Conselheira Tutelar recebe prêmio por resgatar criança de situação de maus tratos, no Pará

Existe algo que você diz todos os dias ao acordar? Para o menino M.N, de 11 anos, por um período de três anos, a frase foi: “Deus, Socorro”. Privado de sua infância, a criança era obrigada, pelo pai, a trabalhar vendendo pupunhas, todos os dias, em sinais de trânsito da Avenida Doca de Souza Franco, em Belém. O tempo que permanecia no local variava, mas a meta diária de vendas, estipulada pelo pai (R$150 dias de semana e R$ 200 aos finais de semana) não diminuia, o que fazia o pequeno permanecer por horas e horas nas ruas.

No dia 5 de maio deste ano, a criança, sem saber, teve seu clamor atendido: chegou às mãos da Conselheira Tutelar Odilene Kerscher, de 44 anos, uma requisição do promotor Januário Constâncio Dias Neto, com um pedido: que o conselho encontrasse um filho a pedido da mãe. Neste sábado (8), Odilene foi homenageada com o Troféu Imprensa, no Hangar Centro de Convenções e Feiras da Amazônia, por sua atuação no caso da criança.

Foto: Fernando Araújo/Agência Pará

“O mérito não é só meu”, resume ela, fazendo questão de destacar todas as pessoas envolvidas no processo e relatando que, sem elas, seria impossível realizar o trabalho. Na solução do caso foi envolvido promotoria; ministério público; conselho tutelar; polícia militar e civil; e a prefeitura de Ananindeua. Todos agiram no cumprimento do seu dever com maestria. Foram exatamente 15 dias desde que o documento foi entregue para ela até que o menino retornasse para os braços da mãe.

Odilene lembra da manhã em que recebeu o caso. “Foram passadas poucas informações, eu só tinha o nome da criança e a informação de que ele corria risco de vida. Como o pai mudava muito de endereço, a mãe não sabia onde ele morava, não sabia sequer se ele estava vivo”, lembra.

Ao receber o caso, a conselheira imediatamente acionou a promotoria de Ananindeua, que permitiu que fosse feita uma varredura para descobrir se ele estava matriculado e frequentando alguma unidade educacional da região. M.N foi localizado na Escola Gonçalves Dias, no bairro da Água Branca.

A conselheira e mais três policiais militares foram até o local. Ao encontrar o menino, Odilene se deparou com uma criança de 11 anos aparentando ter 7; corpo magro; uma seriedade incomum para um menino da sua idade e uma grande apatia. Os cabelos longos e lisos escondiam o rosto, assim como o olhar baixo. Depois de receber a permissão da escola, Odilene conversou com o menino por quase três horas.

Foto: Fernando Araújo/Agência Pará

Depois de muita resistência o menino caiu em choro e contou detalhes dos abusos que sofria. O pai e a madrasta usavam drogas e batiam nele além de obrigá-lo a trabalhar de domingo a domingo. A magreza era pela má alimentação, ele almoçava todos os dias algum salgado antes de ser levado para trabalhar e o cabelo longo era para esconder as cicatrizes das agressões que ele tinha na cabeça quando ousava dizer que não queria ir trabalhar.

Mesmo com muito medo, a criança mostrou a Odilene e aos policiais militares, onde era a casa do pai. Na casa, eles constataram a existência de outras duas crianças, mas que não passavam pela mesma situação de M.N. Vizinhos confirmaram os abusos que a criança passava e que os outros dois não tinham o mesmo tratamento.

Dentro do carro, vendo os policiais e a conselheira confirmarem tudo o que sofria, essa foi a última vez que M.N viu a casa do pai biológico e da madrasta. Daí, foi apenas esperar para fazer o caminho de volta para a mãe.

No mesmo dia, M.N foi levado para a casa de acolhimento da prefeitura de Ananindeua, cujo endereço não é divulgado para preservar a segurança das crianças. Além dessas, o município conta com outras casas que são divididas por idades: de 0 a 6 anos; de 6 a 12; e de 12 a 18 anos.

O local é amplo e conta com educadores especializados e um cachorro tirado das ruas, o Spyke, que é um grande amigo das crianças. No espaço, elas fazem seis refeições por dias, vestem roupas de doação, já que quando são resgatadas vão apenas com a roupa do corpo e dormem em quartos separados por sexo. Há ainda espaço para brincar ao ar livre, tomar banho de piscina e até colher frutas do pé da árvore. “A ideia é que a criança possa ter algum tipo de ressocialização, nem que seja por um curto período de tempo”, diz a conselheira Odilene Kerscher.

Uma das educadoras da casa lembra que M.N era muito introvertido e que por vezes era comum pegá-lo com o olhar perdido. Quando questionado, ele sempre respondia com “não é nada”.

A Conselheira Odilene Kerscher explica que trabalhar com a garantia de direitos da criança e adolescente é algo desafiador. “Essa criança nunca vai esquecer o que foi feito com ela, até mesmo porque a infância dela foi roubada. Nosso trabalho não é fazer com que ela esqueça, mas sim com que ela crie novas lembranças que possam ser mais fortes que o sofrimento que lhe foi causado. Tenho certeza que ela lembrará pra sempre de toda a equipe envolvida no seu resgate”, diz.

O reencontro

A agressão na família do menino começou com a mãe, O.S, que chegou a registrar dois boletins de ocorrência contra o pai do garoto, que a espancava. Em uma das brigas, ele saiu de casa levando a criança, sob ameaça. Desde esse dia, a mãe ficou três anos sem ver o filho até que fez o pedido para o promotor Januário Constâncio Dias Neto, que depois chegou à conselheira.

A mãe fez o pedido porque o pai mudava muito de endereço e dessa forma ela não conseguia encontrar a criança. Mas com todos os entes públicos funcionando juntos, ele voltou para a sua família, em Santa Maria do Pará. “Foi um dia muito bonito. Ele chorou muito e só dizia ‘Mãe, não me deixa mais’ e ela repetia o mesmo. Ali, eu vi que todo o trabalho da equipe valeu a pena”, disse a conselheira.

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