Cobertura florestal nas terras indígenas Suruí Aikewara. Foto: MapBiomas
Os dois territórios que aparecem (abaixo) pertencem ao mesmo povo indígena, o Suruí Aikewara. Eles ocupam uma parte das cidades de Marabá e São Geraldo do Araguaia, no leste do Pará. Do lado direito, está a Terra Indígena (TI) Sororó, homologada em 1983, onde existem oito aldeias. Do lado esquerdo, a TI Twua Apekuowera, que há 21 anos aguarda a finalização do seu processo de demarcação pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e, por isso, não pode ser habitada por eles.
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A área que hoje compõe a TI Twua Apekuowera, mostra um solo desmatado para a pastagem, segundo dados da rede MapBiomas, que mapeia o uso e cobertura do solo. Em 1985, essa terra tinha 11.707 hectares (ha) de floresta e apenas 48 ha usados para agropecuária. Em 2023, o quadro tinha invertido: apenas 916 ha de floresta, e 10.840 ha para agropecuária. A redução da área florestal é de 92%.

Um cenário diferente é o do território vizinho, o Sororó, que, em 1985, tinha 25.875 ha, e, em 2023, 25.387 ha – uma redução de apenas 1,8%. Apesar de pertencerem ao mesmo povo, somente a Terra Indígena Sororó foi preservada.
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O que aconteceu na TI Apekuowera
Desde que a TI Sororó começou a ser delimitada, em 1974, os indígenas insistem que os limites não foram corretos e pedem a inclusão da Twua Apekuowera como parte do território. Mesmo assim, a Funai demarcou somente a TI Sororó e, em 1985, iniciou um grupo de trabalho para refazer o perímetro. Essas informações constam no Diário Oficial da União, de 25 de janeiro de 2012.
Na área onde a Funai ainda não realizou a demarcação — a da Twua Apekuowera — a mudança do uso do solo para pasto é a principal causa da perda florestal. Atualmente, há 239 imóveis rurais cadastrados dentro da TI, aguardando regularização, de acordo com dados do Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (CAR).

A presença desses proprietários se tornou mais um obstáculo ao processo. Enquanto ainda estava instalado o grupo de trabalho, parte da terra chegou a ser destinada aos Projetos de Assentamento Gameleira e Lagoa Bonita. No entanto, essas iniciativas, que pretendiam atender a agricultores, não se sustentaram.
“Os fazendeiros foram comprando lote por lote. Agora, não são mais assentamentos, são grandes fazendas. Hoje, ela [terra] está toda degradada, só tem pastagem”, conta Welton Suruí, cacique da aldeia Itahy, da TI Sororó.
“Os caras [fazendeiros] às vezes me perguntam, e eu explico da melhor maneira possível, dizendo que esse território ficou de fora da primeira demarcação. Eu nasci em 86 e já existia esse erro. Então, eu já nasci herdando esse conflito. Eu sempre falo para as pessoas: se é meu, é de direito. Eu vou lutar e vou querer para mim”, diz o líder indígena.
Welton Suruí diz que nunca houve conflito físico com os não indígenas, mas “sabe que, a qualquer momento, pode surgir um conflito maior quando for publicado um decreto formalizando [a demarcação]”. Ele também afirma que há boatos de que alguns proprietários “querem explorar minério dentro desse território, porque dizem que lá é muito rico para mineração”.
Segundo dados da Agência Nacional de Mineração (ANM), existem 12 processos minerários para exploração em áreas contíguas à TI Twua Apekuowera. São requerimentos de lavra garimpeira para exploração de quartzo, cobre e ouro, como pode ser visto no mapa do Amazônia Minada abaixo.
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Demarcação como política climática
Quando qualquer árvore morre, seja por decomposição ou por queima, ela emite carbono. Assim, o desmatamento é a maior causa de emissões de gases do efeito estufa na Amazônia e no Brasil.
Esse caso do povo Suruí Aikewara é simbólico porque ilustra um argumento recente de organizações como a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), que propõe incluir a demarcação de terras indígenas como uma política, buscando o reconhecimento do papel das populações tradicionais no enfrentamento às mudanças climáticas.
A proposta é que o Brasil estabeleça uma meta de demarcação de terras indígenas até 2035, a ser incorporada à Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC, na sigla em inglês) — documento apresentado pelos países signatários do Acordo de Paris que define como cada nação contribuirá para a redução das emissões de carbono.
Para conter as emissões e mostrar que as demarcações são importantes como medida de mitigação, o movimento indígena está trabalhando na campanha “A resposta somos nós” para incentivar que a luta territorial indígena esteja dentro da agenda de clima, especialmente na 30ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC, na sigla em inglês), que ocorre em novembro, em Belém.
Os dados de estoque de carbono das terras Twua Apekuowera e Sororó confirmam esse argumento da Coiab. Na primeira delas, em que o processo de demarcação não foi concluído, há uma perda de 96% do estoque, segundo a Calculadora de Carbono (CCAL), do Instituto de Pesquisas Ambientais da Amazônia (IPAM). Foram 2,1 milhões de toneladas de carbono emitidas em uma área que, em tese, deveria estar protegida.
Já a TI Sororó, homologada, perdeu apenas 11% do seu estoque de carbono e ainda tem 1,8 milhão de toneladas de carbono preservadas.

Assim como a Twua Apekuowera, há outros territórios que aguardam a finalização do processo de demarcação, mas que continuam emitindo carbono em razão do desmatamento: Cobra Grande (PA), Jauary (AM) e Estação Parecis (MT) perderam, respectivamente, 69%, 66% e 63% de seus estoques de carbono, segundo dados da CCAL.
O Brasil já perdeu 26,6 milhões de toneladas de carbono com o desmatamento em 44 terras indígenas que estão em processos de demarcação na Amazônia, no período de 2013 a 2022, de acordo com dados do CCAL.
A pesquisadora Martha Fellows, do Instituto de Pesquisas Ambientais da Amazônia (IPAM), alerta para a urgência da medida. Ela explica que a Amazônia passa por degradação constante, por causa da mudança climática. “Estamos tendo um aumento da temperatura e uma diminuição da evapotranspiração tão significativa que a própria floresta começa a entrar em um processo de autodegradação. Isso torna as demarcações ainda mais urgentes, porque os cenários futuros para a Amazônia são esses”, explica.
Fellows é uma das autoras do estudo “Demarcação é mitigação”, que mostra a importância da demarcação para proteger e preservar ecossistemas ambientais em todo o mundo.

Para a pesquisadora, o mais importante para que as terras se tornem meta climática é garantir o financiamento, já que os povos indígenas são um dos setores incluídos no Plano Clima, dentro da área de adaptação, e devem receber ações estruturantes com metas voltadas apenas para seus territórios, com garantia de projetos financiados.
“A gente precisa pensar em recursos para garantir que eles [povos indígenas] sejam alcançados. Esse simbolismo de ter uma presidência indígena na Funai, de ter um Ministério dos Povos Indígenas presidido pela Sonia, é importante. Mas, efetivamente, a gente ainda está vendo pouco avanço”, afirma a pesquisadora.
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O processo de demarcação
Identificação – Estudo técnico e antropológico sobre a ocupação tradicional indígena.
Delimitação – Definição dos limites da terra, com publicação no Diário Oficial.
Declaração – Aprovação da demarcação pelo Ministério da Justiça.
Demarcação física – Instalação de marcos e sinalização no território.
Homologação – Ato final de reconhecimento pelo presidente da República.
Registro – Inscrição da terra como bem da União em cartório e no Serviço de Patrimônio da União (SPU).
Processo da Twua Apekuowera parado
O processo de demarcação inclui as fases de identificação, delimitação, declaração, homologação e registro em cartório. O processo da TI Twua Apekuowera ainda está na Funai, na fase de delimitação, mas já deveria ter passado pela declaração. Isso ocorre quando o processo é encaminhado para o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), que assina portaria confirmando os limites territoriais e depois envia para o Presidente da República, que assina a homologação do documento.
Em 2019, o processo foi enviado ao MJSP, para que o ministro Sérgio Moro assinasse a portaria declaratória. Naquele ano, Moro devolveu 17 processos demarcatórios para a Funai, alegando a necessidade do enquadramento da tese do marco temporal. Como base, usou um parecer determinado pelo ex-presidente Michel Temer que, em 2017, ordenou que toda a administração federal adotasse a medida. Entre os documentos devolvidos, estava o da Twua Apekuowera. Até hoje, não foi reencaminhado ao MJSP.
A reportagem entrou em contato com a Funai, e perguntou quais os motivos que impedem o processo de caminhar e se há previsão para ele ser novamente entregue ao MJSP. Até a publicação da reportagem, a InfoAmazonia não recebeu uma resposta.
Welton Suruí conta que, agora, o sonho da demarcação é o sonho de reflorestar esse território. O povo Suruí Aikewara deseja criar um projeto para regenerar a terra. Tradicionalmente, eles vivem da caça, da pesca e da produção agrícola em pequena escala. Nas suas roças, cultivam arroz, milho, mandioca, batata-doce, banana, abóbora, melancia, manga, abacate, caju, goiaba, jaca, coco, mamão e abacaxi.
“Neste momento, a gente vê o mundo todo com o olhar focado dentro da Amazônia brasileira, dentro dos territórios indígenas, porque ainda é o único lugar que encontra a floresta em pé. Eu acredito que há uma possibilidade, sem nenhuma dúvida, de se criar, junto com o MPI [Ministério dos Povos Indígenas], junto com os aliados, um projeto de reflorestamento para a nossa terra”, diz Welton.
Recuperar a vegetação perdida será um desafio quando a terra for devolvida aos indígenas e é provável que ela não seja tão rica quanto foi, mas Fellows afirma que reflorestar é a melhor solução para a TI Twua Apekuowera: “o processo de recuperação de uma área que foi degradada traz muitos benefícios para os serviços ecossistêmicos. Você volta a atrair a fauna, você melhora as condições do solo e da água. Você garante a soberania alimentar, além do estoque de carbono”.
*Com informações da InfoAmazônia, escrito por Jullie Pereira.
