No país do agrotóxico, mulheres da agricultura familiar de Rondônia vão na contramão e 58% não utilizam veneno

Responsáveis pelos cuidados com a família, agricultoras pensam na saúde e na conservação do meio ambiente a longo prazo e se relacionam com a terra de forma diferente dos homens

Só em 2020 a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) liberou a utilização de quase 500 novos agrotóxicos no Brasil. O Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) aponta o Brasil como um dos maiores consumidores mundiais desses agroquímicos ou defensivos agrícolas e o segundo maior comprador de insumos da lista de proibidos em outros países, como por exemplo, na União Europeia. Na contramão desse grave problema à saúde e ao meio ambiente, as mulheres da agricultura familiar são mais resistentes à utilização dos agrotóxicos.

Das agricultoras familiares que são proprietárias e concessionárias de estabelecimentos rurais no país, 77% (590 mil mulheres) disseram na coleta de dados do Censo Agropecuário 2017 (IBGE) não ter utilizado agrotóxicos, e em Rondônia 58% (7 mil) não fizeram uso desse tipo de produto no período de referência, de 1º de outubro de 2016 a 30 de setembro de 2017. É oque revela a análise feita pela reportagem, com informações do Censo Agropecuário 2017, realizada com o apoio da Internews Earth Journalism Network e da Escola de Dados da Open Knowledge Brasil.

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Para a realidade do estado de Rondônia, esses números são significativos, uma vez que 82% dos estabelecimentos rurais (69,3 mil) considerando os proprietários e concessionários são de agricultura familiar, onde a presença das mulheres é maior. Elas são proprietárias de 13% (11,8 mil agricultoras) dos estabelecimentos familiares, em oposição aos 2% (2,5 mil mulheres) da agricultura não familiar.

Ainda em Rondônia, apesar de existirem mais estabelecimentos de agricultura familiar, eles concentram uma área menor, em comparação com aqueles da agricultura não familiar. Os 13 mil estabelecimentos dessa categoria, que estão sob a administração dos homens, têm área média de 393 hectares; enquanto que a área de terras dos 58,2 mil agricultores familiares têm em média apenas 52 hectares.

No caso das agricultoras familiares, a situação não é diferente. A área média das mulheres que lidam com a terra para o cultivo familiar é cerca de cinco vezes menor que a das grandes produtoras rurais. Os 2% de agricultoras não familiares possuem área média de 192 hectares por propriedade, ao mesmo tempo em que os 13% das agricultoras familiares concentram sua produção em uma área média de 43 hectares.

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Essa diferença nos tipos de agricultura explicam os altos índices de utilização de agrotóxicos. Enquanto a agricultura familiar, especialmente as mulheres, busca alternativas ecológicas, as lavouras ostensivas de monocultura de soja, milho, algodão e cana-de-açúcar consomem juntas 80% dos insumos comercializados no Brasil, de acordo com o IDEC.

Decisões como essa, da não utilização de veneno, são o reflexo de uma preocupação com a saúde familiar e com o meio ambiente que é possível verificar na fala das agricultoras, já que, além dos danos ao meio ambiente, como envenenamento do solo e das águas ou a morte de insetos polinizadores, os agrotóxicos geram graves problemas associados à saúde sexual e reprodutiva feminina.

Estudos da  Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) mostram diversos prejuízos causados pela exposição às altas taxas de insumos agrícolas, como infertilidade, má formação dos fetos durante a gestação, resíduo no leite materno, intoxicação, cânceres, distúrbios neurológicos e mentais e até aumento nas taxas de suicídio.

Para Maria das Graças Silva, geógrafa e pesquisadora da Universidade Federal de Rondônia (Unir), as mulheres se preocupam mais com esses fatores por causa do seu papel dentro do ambiente familiar, como mãe e cuidadora.

“Pela minha observação nesses 20 anos de campo, a mulher vai conciliar o plantio com o ambiente, com a natureza, porque elas pensam na segurança alimentar e nutricional, em não usar agrotóxico, em reaproveitar, para garantir a alimentação e o sustento de toda a família a longo prazo”.

Segundo a pesquisadora, a diferença entre as propriedades geridas por mulheres e pelos homens é sentida até visualmente. “É nítida a mudança ao visitar um lote manejado por uma mulher e outro por um homem. Uma mulher que ganha um lote não vai desmatar 100% para fazer a roça”, explica a geógrafa. “Ele é muito mais verde e vivo, porque elas diversificam seus cultivos”.

(A agricultora Cida, além da produção de colorau, produz hortaliças para a alimentação de casa. Foto: Aparecida de Sousa)

Essa observação faz parte da vivência da Cida, ou Maria Aparecida de Sousa, agricultora familiar do assentamento Antônio Conselheiro II, no interior de Rondônia. “Nós, mulheres, olhamos mais para o lado da lavoura branca, ter horta, café, colorau, cana, cacau, milho, arroz, feijão. A gente quer produzir para alimentar”, conta.

A diversidade de cultivos é uma das características essenciais da Agricultura Familiar, de acordo com o agroecólogo e pesquisador da Unir, Emanuel Maia. “Estudando esse tipo de agricultura percebe-se que ela tem funções para além da produção financeira e sustento das famílias, ela ajuda a manter a paisagem com mais diversidade, o que é fundamental para conservação da floresta”.

Feito principalmente por mulheres, quintais produtivos não foram reconhecidos no Censo

Com pouco incentivo técnico e financeiro, as mulheres da agricultura familiar recorrem a caminhos alternativos para a produção no campo e a conservação do meio ambiente em Rondônia.

Entretanto, esse caminho mais sustentável apontado pelas mulheres ainda é invisibilizado. A pouca informação oficial em documentos, órgãos e pesquisas sobre a produção feminina nas áreas rurais é a primeira barreira para construir uma visão geral de como as mulheres se relacionam com o meio ambiente. Não há dados expressivos sobre as relações de gênero no campo, e até mesmo no Censo Agropecuário de 2017, utilizado nesta reportagem, ainda há lacunas a serem preenchidas.

A exemplo da estratégia para a manutenção alimentar e financeira da casa apontada pelos pesquisadores entrevistados, os chamados “quintais produtivos”. Esses quintais são um sistema agroflorestal que combina espécies florestais, lavoura e pastoreio de animais, apresentando biodiversidade, capacidade de produção e de reaproveitamento. Essa produção diversificada ajuda a equilibrar a saúde e a manutenção do solo, diminuindo a necessidade de utilizar agrotóxicos.

Porém, os quintais produtivos e a variedade de cultivos que as mulheres do campo fazem para alimentação não são registrados pelo IBGE, uma vez que o órgão não sistematiza informações da produção dos agricultores para consumo próprio.

O que se torna um problema nesse contexto, já que estudos, como o Terra & Mata, da Ecoporé, demonstram que são as mulheres as principais responsáveis pela produção de alimentos para autoconsumo, doações, trocas entre famílias camponesas e comercialização de excedentes, e mesmo assim, não entram nas estatísticas.

A agrônoma Miriam Nobre, integrante da Sempreviva Organização Feminista (SOF), vem trabalhando junto ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para a ampliação dos dados de gênero coletados no Censo Agropecuário e na melhoria do cruzamento de informações com outras bases de dados.

Ela alerta que, sem o recorte de gênero, a invisibilidade pode se tornar mais acentuada. Integrar questões como a renda obtida no estabelecimento agropecuário e das múltiplas atividades desenvolvidas pelas mulheres, como os quintais produtivos e seus subprodutos (horticultura, floricultura, geléias, bolos, farinha), possibilitaria compreender melhor sua posição e suas práticas no campo.

Como no caso de Eliana Buss da Rocha, do Acampamento de Reforma Agrária Che Guevara, na Zona da Mata em Rondônia. Mais conhecida como Lia, ela conta que hoje, a produção de pasto é majoritariamente masculina, enquanto as mulheres plantam café, milho, arroz, feijão, mas, principalmente hortaliças, que são comercializadas para as escolas pelo Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e utilizadas no consumo próprio, o que acaba não sendo considerado para o Censo.

O caso se repete na casa de Josiane Santos de Souza, a Jô, do Assentamento 14 de Agosto, em Ariquemes. As mulheres trabalham coletivamente cultivando verduras como alface, rúcula, agrião, ervas medicinais e flores, tanto para o embelezamento – nas palavras dela – como para confecção de remédios e repelentes.

Além disso, as mulheres fazem o plantio do cacau, que tem grande potencial para a geração de renda e de reflorestamento. Dentro da lavoura cacaueira, as agricultoras constroem suas hortas e o viveiro de mudas na intenção de reflorestar. “Isso porque queremos criar autonomia, tomar a frente, do nosso jeito, por perceber o que é bom para a família, para a saúde e para a natureza”, explica Jô.

Um projeto que atua nessa linha com as mulheres de Rondônia é o Viveiro Cidadão, da Ação Ecológica Guaporé – Ecoporé. A proposta atende 138 mulheres, de 8 municípios, com a distribuição de mudas e acompanhamento técnico para criação de quintais produtivos. Entre as cadastradas, 52% têm a titularidade da terra, o que assegura o aproveitamento futuro com a plantação de cultivos permanentes, de plantas frutíferas e espécies florestais nativas.

Políticas públicas para mulheres no campo são recentes e de difícil acesso

A posse da terra, por si só, já é um elemento de significativa importância na agricultura familiar e na conservação ambiental, como ressalta o agroecólogo Emanuel Maia (Unir). De acordo com ele, quando se dá a garantia da titularidade, o proprietário tende a conservar.

E para as mulheres, a posse extrapola a condição econômica, tornando-se garantia de sobrevivência para ela, sua família e o mais importante, seus filhos. Lia, do acampamento Che Guevara, ressalta que as famílias sempre tiveram uma mesma posição: quando a situação se regularizar, a posse será em nome das mulheres. “É uma segurança para nós, porque, independente do que acontecer entre o casal, a mulher tem como amparar os filhos”.

Porém, este é um direito recente. A regularização fundiária em nome da mulher foi permitida apenas na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 189. E foi somente em 2003 com a Portaria do Incra nº 981, que se tornou obrigatória a titularidade da terra em nome do casal, independentemente de haver contrato de união formal.

Mesmo com esse avanço, ainda são poucas propriedades em nome de mulheres, poucas pesquisas que possuem o recorte de gênero e poucas políticas públicas voltadas à mulher do campo.

Maria das Graças (Unir) ressalta que mesmo que as mulheres rurais tenham conquistado direitos para sua categoria nas últimas décadas, no sentido de ter acesso à terra, de poder ser proprietária e ter direito à assistência técnica direcionada ao trabalho dela, essas mulheres continuam não acessando estas políticas públicas.

“Durante nossas pesquisas de campo, descobrimos que elas não acessam essas políticas, pois nem documentação elas têm. Quando houve o mutirão para retirada de documentos para as mulheres do campo, muitas vezes quem encontrávamos nas filas eram os homens. Questionados sobre onde estavam suas companheiras, eles abertamente falavam – estão em casa, cuidando dos filhos, da horta.”

Mesmo com incentivos como o do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura (Pronaf-Mulher), até a obtenção do crédito o caminho é sinuoso, pois existe a dificuldade no acesso à informação, na burocracia bancária, na criação do projeto e na aplicação técnica. Com pouca orientação e gestores públicos que não estão abertos ao diálogo, sobram ideias e falta ajuda.

Com menos da metade dos estabelecimentos rurais do estado com acesso à assistência profissional, são também as mulheres as mais prejudicadas, sendo que menos de 20% recebem ajuda técnica, de acordo com dados de 2020 da Entidade Autárquica de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado de Rondônia (Emater-RO).

Para a pesquisadora Maria das Graças (Unir), há a dificuldade de identificar quem é essa mulher, onde ela está e o que ela faz, porque a pouca visibilidade que se dá à questão de gênero no campo fica condicionada a um micro recorte das pesquisas científicas. E como ressalta Miriam Nobre, mesmo que o Censo Agropecuário tenha começado a incluir a questão de gênero desde 2006, o percurso para abarcar toda a realidade do campo, ainda levará um tempo considerável.

(A produção de horticultura para consumo próprio não é contabilizada no Censo Agropecuário como produto do estabelecimento. Foto: Aparecida de Sousa)

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