A Justiça Federal no Amazonas reconheceu violações praticadas contra o povo indígena Waimiri-Atroari quando da abertura da rodovia BR-174 (que liga Manaus a Boa Vista) e determinou que empreendimentos capazes de causar grande impacto na terra indígena não podem ser realizados sem que haja consentimento prévio dos Waimiri-Atroari. A comunidade deve ser consultada, conforme a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de forma livre e informada, com base em regras a serem definidas pelo próprio povo Kinja, como os indígenas Waimiri-Atroari se autodenominam.
A decisão judicial foi proferida em caráter liminar na ação civil pública apresentada pelo Ministério Público Federal (MPF) em agosto de 2017, que levou ao Poder Judiciário o massacre sofrido pelo povo Waimiri-Atroari na abertura da rodovia, um episódio emblemático entre os diversos casos de violações praticadas contra os povos indígenas durante a ditadura militar no Brasil.
Para os Kinja, a determinação referente à necessidade de consentimento do povo indígena para a realização de empreendimentos que causem impacto na terra indígena é fundamental, já que existem tentativas de utilização de seu território sem a adoção de consulta prévia ou mediante um procedimento meramente homologatório. Um exemplo apontado pelo MPF na ação é o projeto de construção de linha de transmissão cujo traçado cruza o território Waimiri-Atroari no trecho onde se situa a rodovia. A nulidade do edital do leilão que previu a linha é objeto de contestação judicial em razão da falta de consulta prévia, livre e informada e da não consideração de alternativas locacionais.
Além da proibição dos empreendimentos na terra indígena sem consentimento do povo Waimiri-Atroari, a Justiça Federal determinou que a União e a Fundação Nacional do Índio (Funai) assegurem a proteção dos locais sagrados que serão designados pelo próprio povo indígena em audiência designada para março deste ano.
Na ação, o MPF apresentou vasta documentação relatando a violação aos direitos do povo Waimiri-Atroari, quando da construção da BR-174, e uma descrição de espaços que devem ser preservados para garantir a memória do povo Kinja, entre eles os postos onde eram desenvolvidas as atividades da frente de atração (nos rios Camanaú, Alalaú e Abonari); as áreas e aldeias onde houve bombardeios; os acampamentos de trabalhadores, de funcionários e do Exército, que eram pontos onde os índios estabeleciam contato e onde certamente houve conflitos; a área da terraplenagem, mencionada em depoimentos como o local onde os indígenas Waimiri-Atroari eram enterrados; entre outros espaços. A lista, apenas exemplificativa, deve ser ratificada e ampliada pelo povo indígena na audiência.
Abertura dos arquivos militares
O MPF pediu também a abertura dos arquivos militares e a reunião e sistematização, no Arquivo Nacional, de toda a documentação pertinente à apuração das graves violações de direitos humanos cometidas contra o povo Kinja, visando ampla divulgação ao público. O objetivo desta medida é complementar as informações já colhidas, de forma a permitir que a sociedade brasileira receba o devido esclarecimento sobre os fatos, em respeito ao direito à memória e à verdade.
A Justiça Federal determinou que União seja intimada a apresentar, voluntariamente, no prazo de 15 dias, cópia dos arquivos que existirem no 6º Batalhão de Engenharia de Construção (BEC) e no 1º Batalhão de Infantaria de Selva (BIS) e que digam respeito aos fatos discutidos no processo, relativos ao período de 1967 a 1977.
Na ação, além dos pedidos liminares, o órgão exige a reparação dos danos causados, por meio de indenização no valor de R$ 50 milhões, pedido oficial de desculpas e inclusão do estudo das violações sofridas pelos indígenas nos conteúdos programáticos escolares, e requer também garantias de direitos para que tais episódios não se repitam. Estas medidas ainda serão analisadas pela Justiça Federal no curso do processo.
Impactos territoriais e genocídio
A ação foi baseada em informações reunidas por meio de inquérito civil público, instaurado em 2012. Foram cinco anos de coletas de documentos e oitiva de testemunhas sobre os fatos narrados na ação. Após o ajuizamento da ação, o MPF se reuniu com os indígenas, em Manaus, para informar pontualmente sobre os pedidos da ação e esclarecer como seria o andamento do processo. Após ouvir a tradução das explanações na língua Karib, os representantes da comunidade indígena presentes na reunião demonstraram ser favoráveis aos itens apontados na ação e solicitaram, por meio do advogado da associação, o ingresso no processo como parte assistente, pelo interesse em acompanhar o desenrolar do caso. O pedido foi aceito pela Justiça.
Em 145 páginas, os procuradores do GT Povos Indígenas e Regime Militar que assinaram a ação fizeram um apanhado aprofundado sobre o povo Waimiri-Atroari e sua história, marcada por violações de seus modos de vida e impedimentos de livre exercício de sua identidade. Os impactos da construção da BR-174 na organização e no território do povo Kinja e o genocídio praticado contra os índios durante a ditadura são apontados pelo MPF com base em documentos, relatórios e depoimentos colhidos durante a apuração do caso.
Na ação, o órgão sustenta que o conjunto de provas apresentadas à Justiça “demonstra que o Estado brasileiro promoveu ações baseadas nas políticas de contato e de ataques diretos aos indígenas que causaram a redução demográfica do povo Waimiri-Atroari em larga escala”. O relatório da Comissão Nacional da Verdade aponta, com base em dados oficiais, que houve uma redução de 3000, na década de 70, para apenas 332 indígenas vivos na década de 80, período de maior atividade do empreendimento de construção da rodovia.
Durante o processo de construção da estrada, o MPF aponta a existência de duas visões sobre a forma como o Estado brasileiro deveria lidar com povos indígenas: a “pacificação” e o extermínio. “Os indígenas eram vistos como um empecilho ao desenvolvimento nacional, cabendo às chamadas frentes de atração promover o deslocamento forçado de seus territórios, afastando-os dos empreendimentos que seriam realizados”, afirma o órgão em trecho da ação.
No caso da BR-174, os documentos e depoimentos coletados demonstram que a “pacificação” foi insuficiente, devido à pressa em finalizar a obra, à insistência por parte do regime militar em manter o trajeto e à forte resistência indígena. O insucesso resultou no acirramento das tensões e o Exército assumiu as operações, oficializando a segunda política: de extermínio.
Em um ofício entre comandantes militares anexados à ação do MPF são listadas ordens claras para “realizar pequenas demonstrações de força, para mostrar os efeitos de uma rajada de metralhadora, de granadas defensivas e da destruição pelo uso da dinamite” perante os índios. Os depoimentos colhidos relatam corpos de indígenas sendo enterrados às margens da estrada e ataques aéreos às aldeias.
A ação civil pública segue tramitando na 3ª Vara Federal do Amazonas