A capa do boletim tem design de Júlia Goulart e a foto é de Luiza Mastop (2024). Imagem: Montagem criada pelo MPEG
Descobrir e cultivar a memória de povos tradicionais, dos conhecimentos ancestrais, é algo basilar para a identidade de qualquer país. Isso porque a cultura e a história de cidadãos indígenas, quilombolas e ribeirinhos na Amazônia ou em qualquer outro bioma do mundo podem e devem funcionar como referência sólida para a busca da justiça social e o desenvolvimento sustentável, como fontes de conhecimento. E, por incrível que pareça, essas sociedades não têm podido divulgar e compartilhar de forma abrangente e perene seus saberes para as novas gerações no Brasil.
Daí ser oportuno o acesso do público ao conteúdo da nova edição do Boletim Ciências Humanas do Museu Paraense Emílio Goeldi (Vol. 20, nº 3 – setembro/dezembro 2025), com o dossiê “Direitos ‘sequestrados’ aos povos tradicionais: possibilidades de compreensão”. Essa publicação reúne artigos de intelectuais indígenas e quilombolas de vários estados do Brasil com novos olhares sobre temáticas estruturais para a construção do futuro da sociedade brasileira.
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A organização do dossiê, que reúne 15 contribuições, é dos pesquisadores José Heder Benatti, Rosani Kamury Kaingang (Rosani de Fatima Fernandes), Uwira Xakriabá (William César Lopes Domingues), Almires Martins Machado, Flávia Silva dos Santos e Jane Felipe Beltrão.
A foto da capa do boletim mostra uma criança indígena sorrindo para a câmera, ao lado de uma mulher adulta, ao se banhar em um rio. A imagem foi captada por uma das autoras do dossiê, a antropóloga Luiza Mastop, e tem significados múltiplos. Um deles, como se vê na publicação, é o de que os povos tradicionais seguem produzindo novos conhecimentos, a serem desfrutados em territórios do futuro, contra o ‘sequestro’ de seus direitos.
Sustentabilidade, educação e linguística
De início, pode-se ler sobre como os conhecimentos tradicionais proporcionam uma agricultura indígena sustentável, sem obedecer a concepções eurocentradas. Trata-se do artigo “Territórios indígenas, conhecimentos tradicionais e sustentabilidade nas Amazônias”, escrito pelos pesquisadores Jane Felipe Beltrão, Gutemberg Armando Diniz Guerra e Tallyta Suenny Araújo da Silva.
A educação escolar diferenciada como fator decisivo para a valorização e a perpetuação desse conhecimento tradicional é abordada em artigo da pesquisadora Rosain Kamury: “Educação Escolar Indígena e Educação Escolar Quilombola: movimentos de luta pelo direito à escola”. Nesse mesmo contexto, os meandros da educação e da identidade do povo Aikewara são expostos no artigo “Construindo memórias com Arihera: educação e identidade Aikewara em foco”, assinado por Luiza de Nazaré Mastop-Lima e Arihera Suruí.
Em outra face da temática do dossiê da revista científica do MPEG, a língua de um povo mostra-se um elemento estratégico para a resistência dos integrantes de um povo diante de ameaças sucessivas. Isso pode ser conferido no artigo dos pesquisadores Lucivaldo Costa e Bekroti Xikrín: “Escrita em língua materna e fortalecimento etnolinguístico”.
Saúde mental e letramento racial
A saúde mental e o bem-viver encontram nas concepções indígenas significados capazes de gerar novas perspectivas sobre esses temas tão presentes no debate das sociedades contemporâneas. Essa temática é acessada pelo leitor no estudo feito pelos intelectuais indígenas Idjarrury Sompré e Eliane Rodrigues Putira Sacuena, intitulado “Bem-viver psicoanimista como alternativa ao conceito de saúde mental: uma proposta a partir de cosmologias indígenas brasileiras”, produzido 0a partir da atuação profissional em coletivos indígenas.
O artigo “A cartilha de letramento racial como forma de enfrentamento ao racismo”, de autoria dos pesquisadores Andrew Rêgo Benjó e Celyne da Fonseca Soares, traz uma proposta de posicionamento concreto frente ao racismo praticado cotidianamente contra os povos originários brasileiros, em particular, o povo negro. Nesse documento, é abordada a aplicação prática do conhecimento acadêmico no enfrentamento de situações de segregação e desrespeito aos povos tradicionais no dia a dia.
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Mulheres e descolonização
Já na seção Debate, Almires Martins Machado, em coautoria com Divina Lopes Guarani e Yvy Mirim (nome civil: Priscila Guarani), traz o artigo “Kunangue Tenondetá: indígenas mulheres Guarani em movimento” com foco nas ações dessas duas lideranças indígenas mulheres para sustentar as possibilidades do bem-viver guarani, ou seja, cuidar dos saberes do povo, inclusive, por meio da língua materna, na coexistência com pessoas não guarani, sem perder a identidade indígena.
E o boletim ainda traz um ensaio fotográfico de José Ubiratan Sompré, intitulado “Kátia Tônkyre, a guerreira que se forjou na luta”. Esse trabalho versa sobre Kátia Silene Valdenilson (nome civil), a primeira cacica de seu povo, os Akrãtikatêjê, que mantém a luta na defesa dos direitos indígenas, como herdeira de seu pai, o líder Hõpryre Ronoré Jopikti Payaré. Ele jamais desistiu de lutar contra o deslocamento forçado quando da construção da Hidrelétrica de Tucuruí.
O boletim também traz três resenhas. Uma delas é “Descolonizar metodologias é necessário, alerta Linda Smith, pesquisadora maori”, de Rita Carneiro. A autora explana sobre os princípios da obra “Descolonizando metodologias: pesquisa e povos indígenas”, lançada por Linda Smith em 1999, como referência para compreensão do universo dos povos tradicionais no Brasil.
“Fatumbi: o oráculo do olhar”, de Daniely Rosário, mostra a essência antropológica das religiões afro-descendentes no Brasil, a partir de trabalhos históricos de Alex Baradel e de Pierre Edouard Léopold Verger (1902-1996). E ainda “Povos indígenas e audiovisual: memórias e resistências no Xingu”, de Camille Castelo Branco, fala sobre o trabalho organizado por Takumã Kuikuro e Guilherme Freitas. Referenciada por autoridades indígenas e não indígenas, como Ailton Krenak, Carlos Fausto, Naine Terena e Watatakalu Yawalapiti, a obra versa sobre a importância dos registros audiovisuais para a concretização de uma vida digna aos povos indígenas.

Artigos científicos
Além do Dossiê “Direitos ‘sequestrados’ aos povos tradicionais: possibilidades de compreensão”, esta edição do Boletim Ciências Humanas do Museu Paraense Emílio Goeldi traz ainda aos leitores sete artigos científicos e uma seção Memória.
- Os três primeiros artigos têm como títulos:
- “A terra do ‘grande senhor Aparia’ e seus descendentes: sobre os Omágua/Kambeba à margem da História”, de Ferran Cabrero;
- “A (morfo)fonologia das consoantes oclusivas orais em Proto-Tupi-Guarani: problemas em aberto, problemas resolvidos e novos problemas”, de Fernando O. de Carvalho;
- e “Evidências arqueopalinológicas de atividades e relações de populações pré-coloniais com o ambiente semiárido, Bahia, Brasil”, de José Orlando Bispo dos Santos, Cristiana de Cerqueira Silva-Santana e Francisco Hilder Magalhães-e-Silva.
Os outros títulos dos artigos são:
- “Términos comparativos y de parentesco en la zoonimia y fitonimia de los toba del oeste de Formosa (Argentina)”, escrito por Pastor Arenas e Nicolás M. Kamienkowski;
- “Modelagem fotogramétrica de sítios arqueológicos e geração de produtos cartográficos: suporte à pesquisa e divulgação do patrimônio cultural de Serranópolis, Goiás, Brasil”, de Paulo Rodrigo Simões, Edilson Teixeira de Souza, Luis Augusto Koenig Veiga e Marcio Schmidt;
- “Tecnologías y resiliencia en el Valle de Lambayeque: perspectiva desde el complejo arqueológico Ventarrón y Collud”, de Marcia Arcuri Suñer, Fabiola Andréa Silva, Marcelo Fagundes e Néstor Ignacio Alva Meneses;
- e “Habitar os sertões: arqueologias e materialidades sertanejas na comunidade de Floresta, São João da Serra, Piauí”, de Vinícius Melquíades.
Memória
Na seção Memória, o leitor confere artigos, como “Paiakan, líder Kayapó: assassinado pelo Estado brasileiro”, de Uwira Xakriabá, acerca dessa liderança kayapó no Pará, Bepkororoti, conhecido mundialmente como Paulinho Paiakan, com atuação marcante pelos direitos dos povos indígenas a partir do município de Altamira, no Pará, em dois momentos de luta contra o Estado.
Já no texto “Memória cotidiana do quilombo Rio Genipaúba”, o pesquisador Amilton Bitencourt Azevedo apresenta as dificuldades de se construir um relato histórico sobre uma comunidade negra. Isso por conta do racismo que atinge esse núcleo populacional na área de várzea do município de Abaetetuba, no Pará.
A experiência milenar de ser cidadãos ribeirinhos diante da falta de apoio governamental para manifestações culturais que fortalecem a identidade de uma comunidade na cidade de Ponta de Pedras, no Arquipélago do Marajó, também é tema de leitura no dossiê do MPEG. Trata-se do artigo “Espaço cultural Casa do Poeta: saraus, performances e a palavra como transformação”, de autoria do pesquisador Marcos Samuel da Costa Conceição. Desse relato memorial surge a pergunta: “Como ribeirinhas/os, não temos direitos culturais?”.
Ainda na seção Memória, com o título “Prazer, meu nome é Galdino Ramos’: uma biografia científica de um pioneiro da identificação forense no Brasil”, Gabriel Angelo da Silva Gomes, Maria Cláudia Santiago e Raul Yukihiro Matsushita relatam a trajetória do médico brasileiro Galdino Ramos e defendem sua significativa contribuição para as ciências forenses no Brasil, especialmente no âmbito da medicina legal e da identificação forense.
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*Com informações do Museu Goeldi
