Foto: Cleiton Lopes/Secom AC
Antes da chegada dos europeus, as terras baixas da Amazônia abrigavam várias centenas de grupos étnicos que viviam em dezenas de milhares de aldeias com uma população estimada entre quatro e quinze milhões de habitantes. Durante milênios, essas sociedades transformaram as paisagens ao longo do curso principal do rio Amazonas e de seus principais afluentes do sul, desenvolvendo práticas agrícolas que criaram solos de terra escura, uma tecnologia que melhorou as propriedades físicas e químicas dos solos tropicais, aumentou sua produtividade e garantiu seu uso sustentável durante séculos.
Essas sociedades rurais, em sua maioria, não tinham grandes centros urbanos, mas eram suficientemente sofisticadas para domesticar dezenas de espécies de plantas, e manipular populações naturais em florestas nativas, para criar bosques manejados dominados por espécies que forneciam alimentos e fibras. Simultaneamente, as culturas que ocupavam a floresta sazonal e as regiões de savana na borda sul da Amazônia criaram paisagens por meio da construção de lomas artificiais, calçadas e sistemas de canais que melhoraram a produção agrícola e criaram sistemas logísticos que sustentaram populações ainda mais densas.
Tragicamente, todas essas sociedades entraram em colapso nos séculos XV e XVI, quando epidemias causadas por patógenos introduzidos durante o Intercâmbio Colombiano devastaram suas comunidades. Embora a arqueologia ainda não tenha descoberto todos os terríveis detalhes, essas sociedades eram particularmente suscetíveis a pandemias devido à sua densidade populacional relativamente alta e a uma rede de comércio que promovia interações culturais. Acredita-se que a população tenha caído para menos de 400.000 indivíduos em um colapso demográfico de proporções gigantescas.
O número de grupos étnicos que existiam antes da “Great Dying” é desconhecido, mas as populações remanescentes eram bastante isoladas umas das outras, o que deu origem à percepção de longa data de que a floresta amazônica era uma região selvagem intacta. A transição para uma floresta selvagem escassamente povoada proporcionou proteção imunológica aos grupos amplamente dispersos devido ao maior isolamento entre eles e os colonizadores europeus. Nos dois séculos seguintes, a população continuou a diminuir devido às intervenções de missionários e agentes coloniais que reintroduziram patógenos em populações que ainda não haviam adquirido defesas imunológicas.
O “boom” da borracha no final do século XIX levou a outra rodada de dizimação, pois as comunidades indígenas foram escravizadas, deslocadas ou massacradas. A maioria sobreviveu como entidades étnicas fugindo para o interior da floresta, ocupando paisagens florestais ao longo de afluentes terciários ou vales remotos no sopé dos Andes e nas terras altas da Guiana. Os antropólogos estimam que o Brasil amazônico tinha uma população aproximada de apenas 100.000 indígenas em meados da década de 1970.
O órgão responsável pelo censo brasileiro começou a coletar dados sobre grupos étnicos individuais em 1991 e essa pesquisa inicial sugeriu que seus números haviam aumentado em 50%, uma tendência confirmada pelo censo seguinte, com um aumento adicional de 72% (Tabela 6.1). O aumento refletiu as altas taxas de natalidade e um aumento em sua contagem catalisado pelo emergente movimento indígena.
Não só os indivíduos foram motivados a se identificar como indígenas como também as aldeias mais remotas foram colocadas no mapa pelo Estado brasileiro com a criação de novos territórios indígenas. Se as taxas de crescimento permanecerem as mesmas (cerca de 6% ao ano), o censo de 2022 deverá mostrar uma população indígena total superior a 700.000.
Ocorreram repercussões demográficas semelhantes em outros países onde os incentivos para reivindicar uma identidade indígena motivaram as comunidades a afirmar ou recuperar seu patrimônio cultural. Infelizmente, há também forças sociais que fazem com que alguns indivíduos abandonem sua identidade étnica, principalmente em populações urbanas que sofrem discriminação ou animosidade racial. Na Bolívia, por exemplo, os indivíduos geralmente se identificam pela origem regional em vez da origem étnica; ambas são afetadas por um ambiente político altamente polarizado.
A chave para o renascimento demográfico foi a implementação de políticas que priorizam a formalização dos direitos à terra de comunidades com patrimônio étnico específico. As comunidades Ribeirinhas/Ribereñas, com raízes indígenas evidentes, estão cientes das vantagens legais de ter uma identidade étnica. Isso motivou as comunidades de toda a bacia a redescobrir seu legado indígena. A tendência de aumentar a autoidentificação é um processo contínuo ao longo de vários trechos do tronco principal do rio Amazonas, especialmente perto da junção do Marañón e do Ucayali (Kukama, Yagua), do Solimões (Tikuna, Miranha, Kokama, Kambeba/ Omágua), do médio Amazonas (Mura), e perto da foz do Tapajós (Arapium, Borari, Mawé).
A recuperação demográfica das culturas indígenas da Amazônia deve ser avaliada, no entanto, no contexto da população não étnica, que é o produto de 400 anos de migração e da subsequente fusão social causada pela miscigenação.
*O conteúdo foi originalmente publicado pela Mongabay, escrito por Timothy J. Killeen com tradução de Lisete Correa