Os campos de soja começam atrás do pequeno pomar de Paulo Bezerra. Ele não conversa mais com seu vizinho, o fazendeiro que planta ali o produto de exportação número um do Brasil e que vive do outro lado da estrada de terra empoeirada. Da última vez, o vizinho os xingou de vagabundos, a ele e a seus parentes da etnia indígena munduruku, conta Paulo, levantando uma cobra coral morta do chão. O réptil pode ter sido vítima tanto das queimadas no campo quanto dos agrotóxicos.
As plantações de soja se estendem até uma distância de dez metros das casas dos munduruku na aldeia Açaizal. “Quando começa a chover, eles começam a aplicar o veneno. É para matar o mato, e toda semana aplicam o veneno na soja para matar os insetos”, explica Paulo, de 56 anos. O resultado: ânsia de vômito, coceira na pele, falta de ar e tonturas. “Cada dia estamos morrendo aos poucos dentro da nossa aldeia. Mas nosso governo está aí, discriminando indígenas, quilombolas e ribeirinhos, que sobrevivem desta terra”, enumera.
Segundo ele, as autoridades não reagem às queixas dos munduruku. “Aqui o governo só está beneficiando uma família de ‘sojeiros’, e mais de 60 famílias nessa aldeia não. Estamos sendo maltratados, castigados pelo uso de agrotóxicos”, afirma.
Os venenos já foram parar nos rios e nos lençóis freáticos, e as plantações dos próprios indígenas estão sendo prejudicadas, relata também o cacique da aldeia, Josenildo Munduruku. “Nossos parentes a cada dia estão adoecendo mais, os nossos animais e os animais da floresta desaparecendo devido ao uso de produtos agrícolas. Eles podem nos matar envenenados”, teme.
Açaizal fica próxima ao Lago do Maicá, na confluência do rio Tapajós com o Amazonas, e faz parte do território indígena Munduruku do Planalto Santareno. Há anos, os munduruku lutam pelo reconhecimento oficial da área, com base no Artigo 231 da Constituição de 1988, que garante aos povos indígenas o direito aos seus territórios tradicionais. Dentro de cinco anos – ou seja, até 1993 – essas áreas deveriam ter sido demarcadas e transferidas para os indígenas. Mas centenas de casos ainda esperam conclusão – incluindo o território dos munduruku nas proximidades de Santarém.
Antes uma cidade adormecida da selva paraense, Santarém se tornou visivelmente o ponto de confluência do comércio brasileiro de soja com a construção da BR-163, que conecta a cidade a Cuiabá desde os anos 1970. Não longe da aldeia munduruku, os caminhões de grãos estrondeiam em direção ao porto de carregamento da multinacional alimentícia Cargill. Daqui, a carga preciosa é transportada de navio em direção ao Atlântico.
Atualmente, há mais quatro estações de carregamento em construção. Os ribeirinhos do Lago do Maicá já temem pelo seu futuro como pescadores. De maneira definitiva, a fronteira do agronegócio chegou à margem sul do Amazonas.
Durante mais de 40 anos, a agricultura avançou em direção ao norte, ao longo das estradas construídas em meio à floresta. No leste, foi a rota de Brasília a Belém. No oeste, o trajeto que leva de Cuiabá a Porto Velho. E, no centro, a BR-163. Cerca de 20% da Amazônia já teriam sido destruídos para dar lugar à criação de gado e ao plantio de soja.
Parques naturais e territórios indígenas ainda permanecem intactos. Resistem ao chamado “Arco do desmatamento”. Mas o novo governo de Jair Bolsonaro já anunciou que, em breve, também quer abrir as áreas protegidas para a exploração econômica. Não se sabe por quanto tempo o rio Amazonas servirá de trava para impedir o salto da agricultura para o norte do país, no coração da Floresta Amazônica.
A pressão sobre a etnia munduruku já está forte. “A cada dia a gente percebe que as áreas florestadas estão reduzindo, a gente acaba a todo momento sendo atacado”, constata o cacique Josenildo. “Por um esquema muito orquestrado de grilagem, os ‘sojeiros’ hoje ocupam esse território, eles acabam se apossando por imensas fraudes no sistema de regularização fundiária”, acrescenta.
Para conter essa evolução, os munduruku apelaram à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) no final de 2018. Quando o órgão enviou uma delegação a Açaizal, fazendeiros de soja da região obstruíram o caminho com dezenas de caminhões.
Naquele momento, os agricultores de soja sentiam que passavam por uma ascensão, descreve Jucelino Farias, da Comissão Pastoral da Terra (CPT) em Santarém. “Logo depois da eleição desse atual governo, eles já se sentiam muito à vontade para continuar nesse processo do avanço do agronegócio, na nova abertura de áreas para plantações”, diz. “Nas comunidades mesmo, o avanço do desmatamento e o avanço da monocultura continuam. E muitos desses desmatamentos para a soja são provenientes da grilagem da terras”, expõe.
A posse ilegal de terras, ou grilagem, ficou mais sofisticada nos últimos anos, descreve Jucelino. Segundo ele, primeiro os fazendeiros identificam as áreas que ainda não têm registro de posse – a exemplo das terras da União reivindicadas pelos indígenas. Os dados de GPS são então, explica, inseridos no Cadastro Ambiental Rural (CAR), que é autodeclaratório (nos moldes do imposto de renda) e obrigatório para todas as propriedades rurais brasileiras para fins de regularização ambiental.
“O CAR não gera título, mas eles o usam para expulsar as pessoas”, explica Farias. O passo seguinte, diz, é conseguir um título de posse “comprando registro em cartório”. Como a Justiça costuma reagir lentamente na maioria das vezes, muitos conseguem concluir o processo, prejudicando as comunidades indígenas. “Eles não têm nenhuma garantia de permanecer no seu território”, lamenta Farias.
A região seria então uma terra sem lei? “Há, sim, lei. Mas o que há em demasia é o desrespeito à lei”, coloca Luis de Camões Lima Boaventura, procurador do Ministério Público Federal em Santarém. “Há, aqui na região amazônica, uma ausência proposital do Estado, justamente numa área onde a expansão agrária ou os recursos minerais estão. E faz-se um esforço equivocadíssimo de negar a preexistência milenar de povos que ocupam essa região. E esses povos fazem um contraponto a esses interesses”, destaca.
Os munduruku em Açaizal e nas aldeias vizinhas já tomaram o destino nas próprias mãos, medindo os seus territórios e registrando pedido de demarcação do território indígena Munduruku do Planalto Santareno junto à Fundação Nacional do Índio (Funai). Mas o órgão foi esvaziado após a posse de Bolsonaro, que tirou dele a responsabilidade de delimitação de terras indígenas e a transferiu para o ministério da Agricultura.
Com isso, abriram-se as portas para a destruição desses territórios, diz Camões. “Muita coisa que existe nesse país é inexplicável. Principalmente nesse momento, onde o próprio Estado brasileiro fomenta este tipo de prática, fomenta a depredação dos recursos naturais que são indispensáveis para a manutenção do ecossistema e da vida de milhares e milhares de pessoas”, critica.
Camões Boaventura já trabalha na região de Santarém há alguns anos. Mas o fracasso do Estado de Direito ainda o choca. “Não há explicação plausível pra justificar a naturalização de uma aberração, que é o que ocorre aqui: a ausência proposital do Estado, a supressão e a aniquilação de possibilidade de vida digna para essas pessoas. Não tem explicação”, indigna-se.