Biodiversidade: saiba como é ser pesquisador na Amazônia

A partir de encontros emocionantes, olhares apurados e muito investimento em ciência. Pesquisadores relatam suas experiências na região

Durante a minha primeira visita à floresta amazônica, em 2017, praticamente não dormi. Três dias e três horas de sono. Sentia que não podia desperdiçar um segundo de olhos fechados. Ao meu redor estava a floresta mais biodiversa do mundo e eu precisava vê-la de perto: os detalhes das noites, os sons madrugadores, a neblina que cobre as manhãs, sentir a chuva que lhe traz vida e o sol filtrado nas folhagens. Experiências inesquecíveis, ainda vívidas em minha mente.

Conhecemos o grande ninho de harpia sobre a árvore mais imponente que já vi, com o grito da ave soando ao longe. Buscamos kambô, a perereca dos rituais amazônicos, imitando-lhe a voz apenas para um macho descer e ver quem eram os intrusos no território. Mergulhamos em igarapés, vimos marcas de onças nas árvores e quase nos perdemos em busca da maior aranha caranguejeira do mundo.

Foto: Reprodução/Greenpeace

Explorei dia e noite com uma lanterna e uma câmera na mão. E o que mais me marcou foi o encontro com um louva-a-deus. Não apenas porque pesquiso esses insetos com o Projeto Mantis, que apresentei semana passada aqui no blog. O especial desse encontro é que se tratava de uma espécie nunca antes documentada. Batizada cientificamente de Metacanthops em 2019, tive a honra de ser a pessoa a encontrar a primeira e única fêmea conhecida desse gênero de louva-a-deus. Enquanto me preparo para voltar à Amazônia em breve, justamente com o objetivo de buscar novas espécies, lembro-me saudoso dessa noite encantada.

Encontrando uma nova espécie da Amazônia

Em média, a cada dois dias, uma nova espécie da Amazônia é revelada ao mundo, valor inclusive subestimado pois inclui apenas vertebrados e plantas. Na busca por descrever e conhecer essa imensa e ameaçada biodiversidade, nós cientistas adentramos à floresta com um olhar apurado, técnico e apaixonado. Era abril de 2017 quando eu parti do Rio de Janeiro para conhecer pela primeira vez a Amazônia. Seguia para Manaus, onde participei do primeiro workshop internacional de louva-a-deus neotropicais, organizado pelo especialista Antonio Agudelo, com realização do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA). Após alguns dias de palestras e muito conhecimento compartilhado, chegou o momento mais esperado: uma imersão de dois dias na Reserva Florestal Adolpho Ducke, uma parcela preservada da floresta amazônica na zona periférica de Manaus.

Foto: Reprodução/Greenpeace

A busca por louva-a-deus, nosso foco, ocorre principalmente à noite. Juntei-me ao João Herculano, que também é pesquisador do Projeto Mantis, ao Marcus, especialista do Espírito Santo e ao João Pedro, estudante em sua primeira ida a campo. A emoção e vontade de explorar falou mais alto que a inexperiência na Amazônia. Quando se busca louva-a-deus, um inseto sem cheiro ou som, e totalmente camuflado, é preciso um olhar minucioso. Escaneamos cada folha, galho, tronco, chão, em busca dos pequeninos.

As lanternas ajudam, destacando o bicho, cuja camuflagem está adaptada à luz do sol, mas não à luz branca artificial. Nessa busca encontramos todos os outros seres noturnos, e quantos são! Insetos de todos os tipos, cores e tamanhos, grandes aracnídeos, serpentes e lagartos, mamíferos ligeiros, além de flores, essências e fungos que desabrocham à noite. Certo momento, o som de tempestade tomou a floresta, mas o vento nunca chegou. Soubemos, no dia seguinte, que o som vinha de macacos bugios. Espetacular.

A cada espécie de louva-a-deus encontrada, uma alegria. A Mata Atlântica e a Amazônia, que um dia já foram conectadas, compartilham gêneros (agrupamentos de espécies) desses insetos. Alguns dos que encontrávamos eram familiares, ainda que sempre um pouco diferentes. Mas eis que num dado momento um pequeno galho se moveu levemente sobre um emaranhado de cipós e troncos. Um detalhe, orgânico e misturado perfeitamente a tudo que o envolvia. Um detalhe que não escapa a olhares acostumados. Era uma louva-a-deus, uma fêmea intrigante.

Em meu caderno de poesias e relatos, assim a descrevi: “Aquela atmosfera noir (na falta de melhor palavra) parecia iluminada por uma Lua de prata, cujo véu lançado sobre a floresta refletia-se nos olhos da bela dama, ali parada. Imóvel como o próprio tronco em que repousava. Não se dependurava, se posicionava acima do galho de forma elegante. Ser mais que fascinante, digno de lendas. Sobre seu corpo e asas curtas, cores de líquens, como se carregasse em si um pouco da floresta e fosse também ela, perfeita.”

Foto: Reprodução/Greenpeace

A cena realmente me marcou. Foram alguns segundos de intensa admiração antes de chamar os outros para vê-la. Ninguém a conhecia. Era diferente de todas as que já vimos antes. Algo dizia que era realmente especial. Ainda que eu faça ciência, e prime pela racionalidade, o inexplicável, o subjetivo e emocional, a intuição sempre estarão presentes em momentos como esses. Afinal, cientistas são seres humanos. E ali éramos quatro jovens entusiasmados com o encontro.

Na manhã seguinte levei a fêmea ao Antonio, o especialista responsável pelo workshop, assim que ele acordou. Eu sequer havia dormido. Vi o sorriso como o de uma criança se abrir, o mais sincero e contente. Ele suspeitava. Andava estudando um grupo de louva-a-deus só conhecido por machos. Seria ela então a tão sonhada fêmea? Ali entrou o olhar especialista, de experiência e anos de pesquisa. Ele contou os espinhos das pernas, verificou estruturas detalhadamente enquanto ela caminhava, e confirmou: sim, era a primeira fêmea do novo gênero de louva-a-deus que ele vinha estudando. O verdadeiro momento “Eureka!”.

Os machos, disse ele, eram parecidos a outros da família, camuflados como folhas secas. A fêmea, porém, era diferente, como um galho, confirmando ser uma linhagem nova, única. Fruto da maravilhosa Amazônia e de sua diversidade deslumbrante que seguiu caminhos evolutivos inimagináveis. Aquela fêmea continua sendo a única do gênero conhecida até hoje, e foi descrita oficialmente em 2019, como a espécie Metacanthops fuscum.

Assim é a descoberta de uma nova espécie. A partir de encontros emocionantes, olhares apurados e muito investimento em ciência. Agora mesmo há milhares, se não milhões, de espécies a serem descobertas na Amazônia. Peças fundamentais das redes de vida do nosso planeta, que desconhecemos por completo. Seres, dos microscópicos aos gigantes, que aguardam ganhar um nome e somar à nossa busca por mostrar o valor de cada pedacinho de floresta em pé. Como diz Gil, em sua mais recente música, “Manter em pé o que resta não basta / Já quase todo o verde se foi / Agora é hora de ser refloresta / Que o coração não destrói.” Que sejamos “refloresta”, em cada parte da Amazônia, e o verde reconquiste seu lugar.

Por Leo Lanna, para o Greenpeace

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