Antropólogos relatam a ligação a povos indígenas que ficavam na divisa com a Colômbia e acabou criando uma “briga” entre Brasil e França no século XIX
Uma estátua de pedra de 1,3 metros de altura com a aparência que representa uma espécie de ser humano e macaco, com as mãos sobre o peito foi encontrada durante uma pesquisa do antropólogo Benjamín Yépez Chamorro, da Universidade Nacional da Colômbia.
A peça em basalto viajou de Manaus para Paris no século XIX e fazia parte de rituais de povos indígenas do Alto Solimões.
“Um deles são os Uitoto, que ainda hoje fazem grandes estátuas de madeira”, comenta a arqueóloga Cristiana Barreto, do Museu Paraense Emílio Goeldi, e uma das autoras de um artigo publicado em julho na revista Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi – Ciências Humanas, que examina a estátua e sua história. Os Uitoto vivem em três países: cerca de 6 mil estão hoje na Colômbia, quase 2 mil no Peru e 100 no estado brasileiro do Amazonas.
O artefato foi encontrado durante a pesquisa sobre a origem da estátua, o livro “La estatuaria Murui-Muinane: Simbolismo de la gente “Huitoto” de la Amazonía colombiana”, do antropólogo Benjamín Yépez Chamorro, da Universidade Nacional da Colômbia (Fundación de Investigaciones Arqueológicas Nacionales, 1982).
No ano de 2018, o antropólogo André Delpuech, diretor do Museu do Homem convidou Barreto, que estava em Paris, e Rostain para explicar a origem da estátua, já que seu objetivo era adicionar a peça em uma exposição.
As análises indicaram que a peça era um legítimo artefato indígena e não apenas uma imitação ou uma obra de pedreiro, como se achava anteriormente. “Quando vi a estátua pela primeira vez, concluí que ela tinha todas as características de uma escultura típica da Amazônia”, conta Rostain. “Minha reação instintiva foi que era muito feia para ser uma farsa. Depois de tantos anos morando na América do Sul, aprendi com museólogos que os falsificadores costumam seguir padrões clássicos para que sua produção seja avaliada como verdadeira.” A pesquisadora do Museu Goeldi acrescenta: “A ambiguidade entre ser humano e animal, nesse caso um macaco, era comum nas peças arqueológicas da Amazônia desde tempos pré-coloniais”.
Logo após a chegada da estátua a Paris, o Museu do Louvre, expôs como representante de culturas antigas da Amazônia, incomodando autoridades e intelectuais do Brasil. Administrador do Teatro da Paz, em Belém, e membro do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, o militar, geógrafo e historiador português Antônio Baena (1833-1898) foi o primeiro a reagir, relatam os autores do artigo na revista do Museu Goeldi. Em uma carta ao presidente da província do Pará, Baena contestava as conclusões do explorador que viajava em nome da França. Os relatos de Castelnau, que criticava as dificuldades de navegação da região, colidiram com os interesses de Baena de intensificar as rotas fluviais para promover o comércio.
Barreto argumenta que a estátua de pedra expõe os preconceitos dos europeus sobre a Amazônia. O naturalista e conde francês Francis de Castelnau (1810-1880) levou a peça de Barra, um dos nomes antigos da atual cidade de Manaus, para Paris em 1848. Em um de seus relatórios, ele associou com as lendárias mulheres guerreiras, as amazonas, “para mostrar uma estética exótica e grotesca, de acordo com a atitude colonialista”, observa. “Os europeus achavam que a Amazônia era uma floresta intocada e despovoada”, comenta. “Não sabiam que tinha um passado de grande diversidade cultural, ainda que os povos indígenas tivessem sido dizimados e a floresta recoberto os vestígios arqueológicos.”
Uma carta escrita do português radicado em Belém acabou inspirando um político e jornalista Manoel de Araújo Porto-Alegre (1806-1879) a escrever uma peça de teatro “A estátua amazônica”, comédia arqueológica publicada em 1851 ridicularizando os franceses. Na peça, o conde Sarcophagin de Saint Crypte, que havia levado para Paris uma escultura em pedra encontrada em uma casa da região do rio Negro, comenta: “Esta estátua revela um mundo inteiramente novo, um mundo civilizado que apareceu e desapareceu (…) é a relíquia de um grande império”. Doutor Fóssil contesta: “Essa estátua não é mais que uma múmia petrificada. Pelos caracteres externos, e sem a ação de reagentes químicos, vê-se que essa múmia é antediluviana; e que é um animal de espécie perdida, a que chamarei, desde já, Pithechiosauro“.
Exibida também no Museu de Etnografia do Trocadéro, entre as obras-primas do Museu de Artes Decorativas e no Museu do Homem, a estátua está agora à mostra no Museu do Quai Branly, Jacques Chirac, todos em Paris. “Os franceses indagaram sobre o interesse de museus brasileiros em repatriá-la”, informa Barreto.
O arqueólogo Paulo DeBlasis, diretor do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP), que não participou do estudo, comenta: “O trabalho sobre a estátua mostra que ainda há muitos mistérios a serem compreendidos na arqueologia e etnografia da Amazônia, inclusive sobre a circulação de bens como artefatos de pedra, que podem eventualmente chegar bem longe de onde foram produzidos”