A construção dos ‘deuses geométricos’: os geoglifos da Amazônia

De acordo com estudos de pesquisadores, estima-se que no estado do Acre, existam mais de 500 estruturas geométricas desenhadas no solo

Os geoglifos são grandes figuras feitas no chão de morros e regiões planas. Essas estruturas de terra escavadas no solo, são formadas por valetas e muretas, representando figuras geométricas de diferentes formas e tamanhos.

Essas estruturas foram encontradas em cerca de 7 países pelo mundo, em lugares como: Peru, Estados Unidos, Inglaterra, Chile, Reino Unido, Austrália e o Brasil. Entre os mais famosos, estão as Linhas de Nazca, no Peru.

Seu Chiquinho e Jacó Sá. Foto: Reprodução / Sanna Saunaluoma

No Brasil, os geoglifos foram descobertos na Floresta Amazônica, no estado do Acre. Ao todo, 523 geoglifos foram encontrados na região leste do estado em áreas de interflúvio (relevos entre dois vales), nascentes de igarapés e várzeas, associados aos rios Acre e Iquiri.

Os geoglifos da Amazônia, como são chamados, tiveram a primeira descoberta em 1970, após a derrubada e queimada da vegetação natural. Em 1977, o PRONAPABA (Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas na Bacia Amazônia), junto com o pesquisador Ondemar Dias, durante um sobrevoo próximo a área onde hoje é localizada a Fazenda Palmares, foi encontrado a primeira estrutura geométrica em formato circular, com uma espécie de vala e mureta.

Após isso, mais 8 estruturas foram identificadas de terra no Acre. Entretanto, foi a partir dos anos 2000 que os sítios tiveram repercussão midiática, com isso, as pesquisas científicas foram iniciadas, revelando informações importantes sobre o manejo da paisagem amazônica por grupos indígenas que habitaram a região entre 200 a.C e 1300 d.C. Essa suposição sugere uma nova percepção sobre o modelo de ocupação da Amazônia por densas sociedades pré-coloniais. 

Os geoglifos em geral delimitam um espaço interno que varia entre 1 e 3 hectares. O tamanho varia entre 20 e 385 metros de diâmetro/lado, com média de 137,5m. Há uma tendência de que as figuras de menor tamanho sejam círculos, mas em tamanhos grandes há tanto círculos quanto quadrados. Constatou-se ainda que a amplitude da valeta varia entre 1,75 e 20m, com média de 11,61m e mediana de 12m. Já a profundidade média das valetas é de 1,40m, variando entre 0,35 e 5m de profundidade

Estima-se que os grupos indígenas viveram há mais de 2 mil anos, sem a ajuda de ferramentas modernas para escavar e transportar toneladas de solo, indicando a necessidade de um esforço coordenado por muitas pessoas. Ao fazerem a medição dos geoglifos, percebeu-se uma uma uniformidade, marcando entradas de acesso. Outra descoberta realizada foi a criação de locais de encontro para rituais, construídos e reconstruídos por mais de 1000 anos, a partir do início da era Cristã, por povos que ocuparam uma grande região, que vai do leste do Acre ao oeste de Rondônia, e do norte da Bolívia ao sul do Amazonas.

Os sítios encontrados são em sua maioria circulares e retangulares, mas outras formas também são vistas, como elipses, hexágonos, octógonos, figuras em U e em D. Além disso, ocorrem figuras ligadas por estradas de cerca de 20m de largura e comprimentos que chegam a 800m, muradas, assim como montículos circulares e lineares, formando complexos conjuntos 

Foto: Reprodução / Edison Caetano

Em alguns conjuntos se percebem diferentes épocas de construção, indicando que em épocas distintas as estruturas foram reformadas, e que novas estruturas foram construídas sobre as primeiras.

Os geoglifos que têm sido encontrados no Acre são estruturas de terra que demarcavam espaços de sociabilidade, de inclusão e exclusão, pois possuíam vias de entrada e saída de ambientes públicos e privados, disciplinando a movimentação dos indivíduos no espaço. Acredita-se que os geoglifos tenham sido abandonados por seus construtores por volta do século XVI ou XVII, como consequência da chegada dos espanhóis nas Américas.

Apesar da variedade de tamanhos e formas, os pesquisadores descobriram uma regularidade em termos de técnicas construtivas. Acredita-se que algum instrumento de medida e cálculo matemático era empregado para decidir dimensões de valetas e figuras resultantes. Os círculos eram construídos com a ajuda de um compasso humano, com o uso de um cipó cujas pontas eram assumidas por 2 pessoas, uma que permanecia no centro da figura e a outra que desenhava, executando um movimento de translação ao redor do centro. No caso das figuras hexagonais ou octogonais poderiam ter sido feitas a partir de um círculo inicial, onde um cipó é esticado, depois dividido em 6 ou 8 partes, usados para dividir o círculo em 6 ou 8 partes iguais. 

Santa Terezinha.  Foto: Reprodução / Edison Caetano

O estudo dos geoglifos do Acre demanda compreender o processo de formação das paisagens da região nos últimos dois mil anos. Ao que tudo indica, a região foi ocupada por grupos ceramistas que, a partir de um determinado momento, passaram a construir espaços sociais cercados por valetas e muretas de terra, com vias de entrada e saída. Esses espaços conectavam-se a outros e aos rios por um sistema de estradas retilíneas escavadas e muradas de longa extensão. Tais construções fizeram parte da cultura arquitetônica de diversos povos habitantes dos vales dos rios Abunã, Acre e Iquiri, que expandiram-se até a foz do rio Acre durante o primeiro milênio da era Cristã. Os geoglifos acreanos possuem similaridades com as trincheiras circulares bolivianas, podendo ser produto dos mesmos grupos étnicos.

Deuses Geométricos

Em 1887, o governador de Manaus ordenou ao Coronel Antonio Labre que subisse o rio Madeira e que encontrasse uma rota por terra entre os entrepostos de produção de borracha no rio Madre de Dios e algum ponto navegável no rio Acre, de forma a construírem uma estrada de ferro que proporcionaria uma conexão entre a Bolívia e Manaus via o rio Purus. A partir do porto Maravilha, no Madre de Dios, Labre seguiu por terra até o rio Acre e, em seu caminho, passou por várias vilas Araona (família linguística Tacana), algumas delas já abandonadas devido aos descimentos para missões religiosas e o aproveitamento dos índios na extração da borracha. No entanto, a poucos quilômetros da fronteira com o Acre, Labre encontrou uma vila povoada por cerca de 200 pessoas e se impressionou com sua organização social. Ali aprendeu que aqueles povos adoravam deuses de formatos geométricos, esculpidos em madeira. Tais efígies eram mantidas em templos no meio da floresta. O pai dos deuses tinha formato elíptico e era chamado Epymará. Os templos não foram descritos, mas levanta-se hipóteses sobre as possíveis funções religiosas dos geoglifos, encontrados não muito longe daquelas antigas aldeias Araona. 

Restos de carvão queimado encontrados numa camada geológica rica em pedaços de cerâmica, existe um indicativo de que houve ali alguma presença humana, a nova série de datações também sugere que os desconhecidos autores dos geoglifos podem ter desaparecido antes da chegada dos europeus nas Américas.

Publicidade
Publicidade

Relacionadas:

Mais acessadas:

IBGE informa que mais de 60% dos indígenas do Amazonas moram em cidades

Segundo o IBGE, a população indígena total, em 2022, foi de 490.935 pessoas, sendo que 62,3% vive em áreas urbanas (305.866) e 37,7% em áreas rurais (185.069).

Leia também

Publicidade