A democratização da água limpa é uma missão complexa na Amazônia Peruana

Iniciativa quer construir casas ecológicas usando água da chuva e energia solar em áreas sem serviços básicos — realidade frequente na região

O bairro de Belén, na cidade de Iquitos, a norte do Peru, ganhou o apelido de “Veneza da Amazônia” porque palafitas amontoadas às margens do rio Itaya parecem flutuar à medida ele sobe ou desce. Mas seus moradores vivem uma relação conflituosa com esse rio, que, embora essencial à identidade e ao transporte local, traz o lixo de toda a cidade às suas portas.

O rio Itaya é um dos afluentes do Amazonas, que nasce nos Andes peruanos e é responsável por 20% da água doce que flui no planeta, o que coloca o Peru no oitavo lugar do ranking mundial em volume de água doce. Segundo a Autoridade Nacional de Águas, a bacia do Amazonas abriga mais de 97% da água doce disponível no país.

Casas de palafitas na margem do rio Itaya, no bairro Belén, em Iquitos, Peru, em 2022. O rio agora transborda com mais frequência na estação chuvosa. Foto: Karin Pezo/Alamy

Apesar dessa abundância, os moradores de Belén sofrem com problemas hídricos que se repetem no restante da Amazônia: sete em cada dez pessoas da região amazônica no continente — e, em alguns casos, nove em cada dez — não têm acesso a saneamento e água potável, segundo a organização britânica World Vision.

A crise climática também afeta a região: os rios agora enchem mais do que o usual na estação chuvosa e ficam mais secos no restante do ano. Recentemente, uma seca severa na Amazônia provocou o isolamento de comunidades em todo o continente e deixou, só no estado brasileiro do Amazonas, mais de 600 mil pessoas sem acesso a serviços básicos.

“É uma grande ironia”, diz João Diniz, diretor da divisão latino-americana e caribenha da World Vision. 

“As famílias que vivem na bacia hidrográfica do curso d’água mais importante da Terra não têm acesso à água limpa. Muitas crianças morrem de doenças infecciosas evitáveis e passam fome”.

Margens do bairro de Belén. Moradores não têm acesso a serviços de saneamento e água potável, e o rio Itaya leva resíduos de toda Iquitos até suas portas. Foto: Karin Pezo/Alamy

Urbanismo amazônico 

Em 2012, um incêndio destruiu cerca de 200 casas em Belén, o que forçou os governos nacional e local a realocar a população da parte baixa do bairro, nos anos seguintes, para a Nueva ciudad de Belén, a 12 quilômetros da cidade de Iquitos. Longe do rio Itaya, as pessoas realocadas não sofreram mais com as cheias e os resíduos que chegavam a suas portas.

A criação de Nueva Belén, em 2016, levou o Ministério da Habitação do Peru a lançar uma licitação para propostas de planejamento urbano, o que chamou a atenção da arquiteta Belén Desmaison, professora da Pontifícia Universidade Católica do Peru. “Estávamos muito interessados em abordar a arquitetura e o planejamento urbano pelo lado ambiental, considerando os impactos das mudanças climáticas na Amazônia”, afirmou ao Diálogo Chino.

“A Amazônia é muito versátil”, acrescenta Desmaison. “Os rios se movem, mudam de curso, o fluxo sobe e desce. Nos últimos anos, as secas têm sido mais persistentes. Temos que pensar nisso como um todo”. 

Protótipo de uma ‘treliça bioclimática expansível’ para armazenar água da chuva em uma residência ecológica que funciona de forma autônoma em relação às redes de água e energia, em San Tomás, perto de Iquitos. Foto: Casa-Pucp

Desmaison reuniu uma equipe interdisciplinar de instituições do Peru e Reino Unido para desenvolver o projeto Cidades Autossustentáveis Amazônicas (Casa). Desde 2018, o grupo trabalha com moradores de Nueva Belén para planejar uma comunidade com 2,5 mil casas ecológicas. O protótipo de moradia tem autonomia em relação às redes de eletricidade e água, já que um de seus principais itens é a “treliça bioclimática expansível”, que armazena água da chuva.

“Em vez de usarmos caixas d’água, o armazenamento é feito em tubos plásticos, e a casa gera sua própria energia [solar]”, explica Eliazar Ruiz, que mora em Nueva Belén e faz a manutenção do protótipo da casa ecológica. “Ela também tem um banheiro seco; é uma casa bem equipada e econômica”.

O protótipo de residências ecológicas oferece um espaço de uso comunitário, incluindo horta, local de reuniões, playground para as crianças e uma lavanderia comunitária. Foto:Casa-Pucp

O projeto-piloto inclui ainda uma cozinha planejada para reduzir a poluição e o risco de problemas respiratórios: uma churrasqueira é alimentada a energia solar; as janelas são projetadas para otimizar a circulação do ar; e os azulejos são feitos de barro amazônico adequado ao clima úmido.

Desde a criação do protótipo, a equipe do grupo Casa ganhou diversos prêmios de arquitetura e design na Ásia, na Europa e na América Latina. Porém, o desafio é fazer com que os governos adotem os protótipos onde eles são mais necessários: o projeto ainda depende de aprovação governamental para seguir adiante.

Enquanto isso, a realidade dos amazônidas é cada vez mais desafiadora. Nos últimos anos, as comunidades vêm enfrentando não apenas os efeitos das mudanças climáticas e o descarte insustentável de resíduos, como também os impactos da mineração e da exploração de petróleo. Kleber Espinoza, coordenador do Casa, acredita que tudo isso faz com que a população da Amazônia tenha cada vez mais “água de menor qualidade”. 

Equipe do projeto Casa constrói sistema de tratamento de esgoto para o projeto-piloto, que visa devolver ao rio as águas residuais já limpas. Foto: Casa-Pucp

Mais que um rio  

Nas últimas décadas, diversos projetos que buscam melhorar a qualidade de vida na Amazônia peruana foram financiados por empresas e instituições internacionais, como o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento e o Fundo das Nações Unidas para a Infância.

“Várias iniciativas privadas conseguiram garantir mais acesso à água para a população, mas a lacuna ainda é muito grande”, diz Sandra Ríos, diretora do escritório da Wildlife Conservation Society em Iquitos.

As soluções devem ir além da instalação de cozinhas, banheiros e encanamentos, acrescenta. Ríos diz haver um componente cultural na Amazônia que deve ser considerado para se ter sucesso nos projetos: “As pessoas gostam de consumir a água do rio, dos igarapés, e é complicado ir contra seus costumes. Reunir-se nesses lugares faz parte de suas vidas, é onde eles conversam, pescam, tomam banho e passam tempo juntos”.

Para Verónica Shibuya, do Centro Amazônico de Antropologia e Aplicação Prática, os povos amazônicos têm “uma conexão com a água, com seus seres espirituais”. 

“As pessoas gostam de consumir a água do rio, dos igarapés, e é complicado ir contra seus costumes. Reunir-se nesses lugares faz parte de suas vidas, é onde eles conversam, pescam, tomam banho e passam tempo juntos”,

diz Sandra Ríos, diretora do escritório da Wildlife Conservation Society em Iquitos.

Ríos cresceu dessa forma, mas hoje entende que é preciso adaptar algumas tradições. “Quando éramos crianças, costumava-se dizer que tomar banho com água da chuva fazia seus ossos doerem — e doía mesmo, doía de verdade”, lembra. “Mas precisamos nos adaptar. Mesmo que digam que [a água da chuva] tem um sabor diferente ou propriedades curativas, temos que promover um melhor uso da água”. 

Soluções hídricas autossustentáveis

Enquanto sua treliça bioclimática aguarda as aprovações necessárias das autoridades, o projeto Casa já trabalha em outros protótipos que tentam sanar problemas na Amazônia peruana, como o de uma alternativa autossustentável para o tratamento de água.

“É uma pequena balsa, que poderá viajar para outras partes da floresta e tratar a água para as populações ribeirinhas poderem usá-la”, explica Kleber Espinoza.

Mas a arquiteta Belén Desmaison sabe que esse protótipo — e o próprio Casa — só será eficaz se houver vontade política para implementá-lo e atenção aos costumes locais: “Temos de estar abertos para ouvir e aprender. Precisamos entender a história, ver como as populações da Amazônia têm crescido. Se não dedicarmos tempo para fazer isso, nenhum projeto será bem-sucedido”.

Esta reportagem foi produzida com o apoio de Voces Climáticas, iniciativa do International Development Research Centre, LatinClima, Tropical Science Centre, Claves 21, Climate and Development Knowledge Network e Fundación Futuro Latinoamericano.

*O conteúdo foi originalmente publicado pelo Diálogo Chino, escrito por Jack Lo Lau.


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