As policiais femininas e o assédio sexual nas instituições militares

Foi na década de 1950 que surgiu a ideia de empregar mulheres em missões policiais no Brasil, com o intuito de sanar lacunas existentes na organização policial.

A segurança pública é um universo inesgotável de assuntos para serem publicados. Infelizmente os noticiários dos telejornais estão fartos de notícias sobre segurança pública e criminalidade. Esses últimos dias tivemos a triste notícia do assassinato do congolês Moïse Kabagambe e o caso do Sargento da Marinha que mata vizinho negro, no Rio de Janeiro, alegando que o confundiu com bandido. Esses dois casos levantaram o debate sobre o aumento do racismo no país. Pensei até em escrever sobre o racismo estrutural nas organizações policiais do Brasil.

Também tivemos o caso dos policiais militares que foram filmados furtando uma casa na Vila Aliança, zona oeste do Rio de Janeiro. Também pensei em escrever sobre isso. Fiquei com enorme dúvida.

Mas o tema que escolhi hoje não foi nenhum desses dois. No dia 10 de fevereiro, Rondônia comemora o Dia da Policial Militar Feminina. Esse dia foi escolhido por ser o dia que a primeira mulher ingressou nos quadros da Polícia Militar do Estado de Rondônia, 10 de fevereiro de 1983.

Em respeito às inúmeras policiais militares femininas com quem trabalhei ao longo de minha vida policial militar, não poderia deixar de fazer uma singela homenagem a elas, minhas irmãs de farda, companheiras de trabalho e verdadeiras guerreiras. Em minha página no Facebook postei minhas felicitações pelo seu dia:

“Parabéns a todas as mulheres que integram a Polícia Militar. A cada dia vocês conquistam mais espaço e respeito em todos os segmentos da sociedade. Romperam uma barreira importante ao serem aceitas em uma instituição predominantemente masculina. Ao longo dos anos mostraram seu valor, que são policiais militares tão capazes quanto qualquer homem. Mas, ainda há muito o que conquistar, é necessário serem respeitadas como profissionais e como mulheres. Meus respeitos às pioneiras, pelas conquistas e caminho que trilharam, e as atuais, por manterem as conquistas do passado e irem mais além”.

Fotos: Daiane Mendonça/Secom RO

Movido pela emoção, pelo respeito, carinho e gratidão por todas as policiais femininas com quem trabalhei, e pelas que não trabalhei, mas acompanhei suas trajetórias de trabalho e luta, decidi escrever sobre elas, as mulheres guerreiras.

Se em Rondônia as mulheres foram aceitas na Polícia Militar apenas em 1983, no estado de São Paulo, pioneiro no policiamento feminino, a primeira policial feminina ingressou nos anos 50.

Foi na década de 1950 que surgiu a ideia de empregar mulheres em missões policiais no Brasil, com o intuito de sanar lacunas existentes na organização policial. Ao observar a inclusão de mulheres no contingente policial em vários países da Europa e nos EUA, constatou-se que uma policial feminina seria mais indicada para atender certas ocorrências no setor de segurança pública, como por exemplo, a prostituição e a delinquência juvenil¹.

Foto: Reprodução/Arquivo da Polícia Militar de Rondônia

A primeira mulher a ingressar na Polícia Militar foi a senhora Hilda Macedo. Em 1953, quando era assistente da cadeira de criminologia da Escola de Polícia do estado de SP, cujo titular era o professor Hilário Veiga de Carvalho, ela defendeu a igual competência de homens e mulheres ao apresentar, no I Congresso Brasileiro de Medicina Legal e Criminologia, uma tese sobre a Polícia Militar, onde escreveu:

“a criação da Polícia Feminina é, pois, de se aconselhar formalmente, sendo encomiástico um voto para seu imediato estabelecimento consubstanciando uma corporação que formará harmonicamente ao lado de seus irmãos, os policiais, para o melhor cumprimento da lei de da manutenção da ordem, dentro dos ditames da compreensão, do auxílio e da bondade”.

Em 1955, o governador do Estado, Jânio Quadros, encarregou o diretor da Escola de Polícia, Walter Faria Pereira de Queiroz, de estudar a criação em São Paulo de uma polícia feminina. Na data de 12 de maio do mesmo ano, sob o Decreto 24.548, institui-se, na Guarda Civil de São Paulo, o corpo de Policiamento Especial Feminino e, na mesma data, Hilda Macedo tornou-se a primeira comandante do Policiamento Especial Feminino. Mais tarde a senhora Hilda Macedo tornou-se coronel da Polícia Militar do Estado de São Paulo.

Não apenas a Polícia Militar de São Paulo fez história ao ter a primeira policial militar feminina. Rondônia também fez história ao ter a primeira mulher a comandar uma corporação Policial Militar no Brasil, a Coronel PM Angelina dos Santos Correia Ramires. Em 19 de agosto de 2003 ela assumiu o cargo de comandante geral da Polícia Militar do Estado de Rondônia, permanecendo até 01 de janeiro de 2011, passando mais de sete anos no cargo, um recorde de permanência ainda não batido.

Muitas foram as conquistas das mulheres na carreira policial militar. Mas muito ainda há a se conquistar, principalmente respeito. Como em toda e qualquer carreira, as mulheres têm sido vítimas de discriminação, preconceito e assédio sexual. Nas corporações militares não é diferente, até mesmo porque são instituições predominantemente masculinas.

Em 2020 foi apresentado um estudo realizado pelo juiz de Direito Rodrigo Foureaux e pela juíza federal da Justiça Militar Mariana Aquino sobre assédio sexual nas forças de segurança pública e forças armadas. O estudo aponta que “das 1.897 mulheres das instituições de segurança pública e Forças Armadas ouvidas em pesquisa, 74% afirmaram que já sofreram assédio sexual; 83% não denunciaram o assédio”².

Foureaux lembrou que a atividade de segurança ainda é considerada tipicamente masculina. “Embora as mulheres tenham condições de prestar os mesmos serviços em iguais condições, elas são prejudicadas pela existência do assédio sexual”. E explicou que muitas vezes a mulher é vista como um patrimônio da instituição. “Já ouvimos coisas como: as mulheres servem para enfeitar o quartel ou encerar os pátios”, revelou. Esse é um comentário intolerável, pois as mulheres policiais militares exercem os mesmos serviços que os homens, administrativos e operacionais. Estão nas ruas combatendo a criminalidade e arriscando suas vidas.

O juiz destacou ainda que esse é um problema institucional e deve ser tratado como tal. “Não estamos falando de casos isolados. Há necessidade de que seja adotada uma política efetiva de combate ao assédio sexual nas instituições”.

Para a juíza federal da Justiça Militar Mariana Aquino, o assédio sexual, que ocorre em todas as esferas, adquire um contorno peculiar nas Forças Armadas e nas instituições de segurança pública. “Isso é um problema mundial. No entanto, na esfera militar, em virtude da hierarquia e da disciplina, isso toma uma proporção um pouco diferenciada”, afirmou. “A hierarquia não pode ser utilizada para práticas criminosas ou ilegais”. Aquino reforçou a necessidade de uma mudança de cultura e do acolhimento às mulheres vítimas de assédio no trabalho. “Pelos relatos que coletamos, podemos perceber que a vítima fica muito abalada, e isso compromete à sua saúde mental. É importante que a vítima seja ouvida e acolhida”, afirmou.

Alguns dos fatores que sempre contribuíram para a continuidade dessa cultura do assédio foram o medo de serem perseguidas pelos assediadores, de terem prejuízos na carreira, o desconhecimento de seus direitos, a dificuldade de distinguir o assédio da “paquera” e a falta de legislação própria para punir esse tipo de conduta nas corporações militares.

O Código Penal Militar Brasileiro não prever tipificação para ocorrências de assédios sexual e moral. Alguns autores entendem que no momento em que houve a edição do Decreto-lei n. 1.001, de 21 de outubro de 1969, não havia mulheres integrando os quadros das instituições militares. Na legislação penal comum, o crime de assédio sexual só foi tipificado em 2001, com o advento da Lei nº 10.224, de 15 de 2001, que incluiu o art. 216-A ao Código Penal, com a seguinte redação: “Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função”.

Injustificável, no entanto, é o fato de não terem alterado o referido Código Penal Militar para, também, ser incluída a prática do assédio sexual, como o fez o Código Penal Brasileiro.

Considerando que o crime de assédio sexual não está previsto no Código Penal Militar, a conduta de “Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função” não era um crime militar, mas apenas um crime comum, devendo, o assediador responder na justiça criminal comum, com base no art. 216-A do CP.

No entanto, com o advento da Lei º 13.491, de 13 de outubro de 2017, que alterou o Código Penal Militar, criando os crimes militares por extensão, ou seja, os crimes previstos em qualquer legislação penal, quando praticados em alguma das situações mencionadas nas alíneas do inc. II do art. 9º do CPM: em regra são os crimes praticados por militar contra militar, os praticados em locais sujeitos a administração militar ou os praticados em serviço. Com essa nova redação, ao crime de assédio sexual, quando praticado por um militar (homem ou mulher) contra outro militar (homem ou mulher) será considerado um crime militar. Não há dúvidas que essa conduta é considerada um crime militar e deve ser combatida.

O assédio sexual deve ser combatido em todos os ambientes e em relação a todas as pessoas. No caso específico das mulheres, que são as vítimas mais comuns desse tipo de crime, deve-se ter uma especial atenção, pois elas representam um grupo especial de pessoas que vem sendo, ao longo da história, vítimas de muitos crimes e preconceitos. Não há mais espaço para condutas machistas, cultura do estupro, feminicídio, violência doméstica contra as mulheres, assédio sexual entre outras condutas que violam a dignidade das mulheres. No meio policial militar, menos ainda. Homens da lei devem respeitar a lei, a começar pelo respeito a suas colegas de farda.

¹  https://www.aopp.org.br/mulheres-policiais-militares-65-anos-de-historia-realizacoes-e-conquistas-em-sao-paulo/#:~:text=Hilda%20Macedo%20(1%C2%AA%20Comandante%20do,em%20uma%20Pol%C3%ADcia%20no%20Brasil

²  https://www.cnmp.mp.br/portal/todas-as-noticias/13591-em-pauta-74-das-mulheres-das-instituicoes-de-seguranca-publica-e-forcas-armadas-ouvidas-em-pesquisa-ja-sofreram-assedio-sexual-mostra-debate-no-programa

Sobre o autor

Sávio A. B. Lessa é Doutor em Ciência Política; pós graduado em Ciências Penais, Segurança Pública, Direitos Humanos e Direito Militar; Advogado Criminalista; Professor de Direito Penal e Processual Penal da FCR; Pesquisador do PROCAD/MIN. DEFESA; e Coronel da Reserva da PMRO.

*O conteúdo é de responsabilidade do colunista 

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