Educação ajuda mulheres a superar traumas da violência no Pará

Foto: Divulgação/Agência Pará

Ela fez de tudo para “não provocar” ciúmes no marido. Com pouco mais de 16 anos, Angelina Firmina Neta se recolheu às tarefas do lar. Lavava, cozinhava e procurava estar sempre atenta às necessidades do marido. Afastou-se dos amigos e familiares. Vivia para ele. A recompensa por toda a dedicação veio através de um banho de álcool e um fósforo riscado. As marcas das queimaduras de terceiro grau que ela traz no corpo ainda hoje são uma amarga lembrança da primeira – não a única – vez que Angelina sofreu violência doméstica. Hoje, atendida por um projeto de resgate da cidadania para pessoas em situação de rua, realizado pelo curso de Terapia Ocupacional da Universidade do Estado do Pará (Uepa), ela se sente livre pela primeira vez.

A vida sempre foi dura com esta pernambucana nascida em Serra Talhada. Angelina trocou aos 10 anos de idade as bonecas pela enxada, a conversa com as amiguinhas da escola pelas ordens dos adultos na roça. Ao invés de desenhar na terra os sonhos de infância, ela plantava a comida para a mãe e os 10 irmãos se alimentarem. Chegava em casa ao final do dia com a pele fina e branquinha queimada pelo sol implacável da roça, após um longo dia de trabalho.

Aos 16 anos, casou-se. Saiu da terra de origem e constituiu a própria família em Juazeiro, na Bahia. “Tudo no começo são flores. Depois ele passou a ter muitos ciúmes de mim”, relata. Angelina não podia sair de casa, não podia falar com outras pessoas. Tudo motivava ciúmes. Mantinha-se isolada dentro de casa. Numa manhã, enquanto lavava as roupas, o marido saiu e pouco tempo depois voltou com um líquido transparente dentro de uma garrafa. Ele a surpreende ao derramar álcool e em seguida ascender um fósforo sobre ela. O fogo se alastrou pelo rosto, cabeça, peito, costas e braços de Angelina. A dona de casa sequer lembra quanto tempo levou para o fogo cessar.

“Ele queria me matar. Veio atrás de mim depois. Foi preso, mas o soltaram”, relatou a vítima. Após se recuperar, foi morar em Arco Verde, Pernambuco. Lá encontrou um novo amor. Educado, gentil e compreensivo. Ele a acolheu. A vida recomeçou mais uma vez. Tempo depois, o homem cortês foi tomado pelo ciúme. Numa noite, o casal saiu. Ele a levou até os fundos do Terminal Rodoviário da cidade. Parecia ser apenas local para uma conversa sobre o relacionamento, até o homem desferir 13 facadas em Angelina, que ficou meses hospitalizada. Devido à gravidade dos ferimentos, Angelina perdeu o útero e tem no corpo as marcas de várias cirurgias.

Depois de uma série de relacionamentos frustrados, entre eles o que a fez vir para o Pará, Angelina não se permitiu mais ser violentada e foi morar nas ruas de Santa Isabel, Região Metropolitana de Belém. Ela conta que, durante a vida nas ruas, homens tentaram diversas vezes estuprá-la. Antes que algo pior acontecesse, uma família a acolheu e depois a direcionou para o Abrigo João de Deus, na Cidade Velha, em Belém.

Angelina se sente acolhida no abrigo. Ela ajuda na cozinha, não por obrigação, mas por gratidão. São sete anos morando num mesmo local, sem humilhações ou abusos. Ela conta que nunca se sentiu tão livre em toda a vida. “O que eu sofri nesse mundo não desejo nem para o meu pior inimigo”, lamenta. Apesar disso, ela diz perdoar todos os homens que a maltrataram, feriram, bateram e deixaram marcas internas e eternas.

Nos dois últimos anos, ela passou a interagir melhor com os amigos e amigas do abrigo, ao desenvolver as habilidades físicas e intelectuais, participando ativamente do projeto “Atuação da Terapia Ocupacional social com moradores de rua: resgate a cidadania”, realizado no espaço pela professora Rita de Cassia Gaspar da Silva e acadêmicas do curso de Terapia Ocupacional da Uepa.

No mínimo duas vezes na semana, Angelina passou a fazer alongamentos, brincar com jogos de memória e até dançar. “Os moradores de rua, em geral, são ociosos e levam uma vida sedentária. Eles se sentem excluídos socialmente, marginalizados pela história de vida que têm. Com esse projeto, eles melhoram o raciocínio, têm maior facilidade de se relacionarem entre eles”, diz Rita de Cássia.

Nesses momentos de descontração e risadas é que a pernambucana consegue esquecer o passado turbulento que teve. “É muito bom receber essas atividades aqui. São muito legais. Nós ficamos muito felizes”, diz ela.

Educação contra a violência

A história de vida de Angelina reflete os assombrosos índices de violência contra a mulher no Brasil. De acordo com o Mapa da Violência 2015, registraram-se 4,8 assassinatos a cada 100 mil mulheres, número que coloca o país no 5º lugar no ranking mundial nesse tipo de crime.

Estes números se limitam ao registro de violência da mulher diretamente agredida. Certamente os índices dobrariam se levassem em consideração aqueles que convivem na mesma casa com o agressor, como filhos, irmãos, avôs e avós, pais, pessoas também violadas e agredidas, mesmo que indiretamente.

Foi o caso de Ana Daniele Mendes Carrera, 24 anos, filha de Maria Irenice Mendes Carrera, 58 anos. Durante a adolescência, Ana chegou a encarar como algo normal a “briga de marido e mulher”, ao presenciar várias discussões entre os pais. Segundo Ana, a mãe sofria violência psicológica constantemente. Esse tipo de violência se configura em xingamentos e humilhações, em geral, precedidos de agressão física.

“Cheguei a pensar que estar naquela situação poderia ser culpa da minha própria mãe, por várias vezes pensei: ‘é tão fácil. É só mandá-lo embora”. Hoje consigo compreender que o medo a paralisava e a dúvida de não saber como manter as duas filhas financeiramente era constante. Há muito tempo que ela não sabia o que era trabalhar fora. Desde o casamento se tornou dona de casa e o seu trabalho ficou restrito ao espaço doméstico, nem ao menos havia concluído o ensino médio na época”, conta Ana.

Essa fase da vida de Ana marcou tanto que a egressa do curso de Licenciatura em Pedagogia da Uepa decidiu basear o próprio Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) num estudo sobre a atuação do pedagogo no Centro de Referência de Atendimento à Mulher em Situação de Violência (CRAM), em Ananindeua. Ela pensou em como usar a profissão e a educação para ajudar as mulheres e os filhos a superarem os traumas causados pela violência doméstica.

Com o tema “Em briga de marido e mulher a educação mete a colher: a atuação do profissional de Pedagogia no Centro de Referência de Atendimento à Mulher em Situação de Violência”, Ana reforça que a educação nas escolas e nas universidades é a saída para reduzir as diferenças entre os gêneros.

“Com certeza falta um currículo voltado para as questões de gênero e sexualidade, desde a escola básica até os cursos de formação de professores. Preparar os profissionais da educação é fundamental para o combate à violência de gênero. Uma educação menos sexista minimizaria a violência contra a mulher”, reforçou.

Ana identificou que incentivar as mulheres a voltar à escola, se qualificarem profissionalmente, dá ânimo e forças para que saiam da condição de vulnerabilidade e dependência do parceiro, assim como ocorreu com a própria mãe. Maria Irenice concluiu o Ensino Médio e conseguiu trabalhos como doméstica. A partir disso, se sentiu forte o suficiente para encarar a vida e não mais permitir ser violentada.

Com a pesquisa, Ana destaca que o papel dos pedagogos que atuarem na área deve ser o de encorajá-las e encaminhá-las a cursos, assim como identificar as sequelas emocionais nos filhos e orientá-los a compreenderem a origem e a saída da violência contra a mulher. “Eu costumo dizer que a superação é diária, e a minha se iniciou por meio das pesquisas na universidade. O conhecimento me proporcionou compreender que há uma violência específica contra as mulheres e a lutar contra ela”, ressalta. 

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