Conheça o registro histórico da Revolução da Cabanagem no Pará

O Pará tem atrativos para deixar todo tipo de turista satisfeito, não importa que região do Estado ele esteja visitando. As opções vão das praias de rio e de mar à culinária singular, passando pelo turismo rural, religioso, cultural, esportivo e histórico, entre outras atrações feitas para o deleite do viajante. E histórias não faltam para estimular o roteiro turístico. A Cabanagem, movimento popular que tomou o poder no Pará em 1835, é um dos mais interessantes vieses históricos para quem busca passeios recheados de curiosidades, registros materiais preservados e cenários que transportam o visitante para outro tempo, sem deixar de lado as belezas naturais que marcam a paisagem do nordeste paraense.

O município de Cametá, distante 150 quilômetros em linha reta de Belém, guarda resquícios do início da revolução civil amazônica junto com o título de “Cidade Invicta”, crédito concedido por ter resistido à invasão cabana, após cortar laços com o movimento. O historiador Dmitryus Pompeu Braga conta que a crise econômica e social que a população atravessava naquele período e as regalias da regência portuguesa que governava o Estado fomentaram a revolta que teve início no seio da população na capital e no interior.

Painel instalado na Praça da Cultura, no centro de Cametá. Foto: Thiago Gomes/Ag. Pará
“Cametá apoiou o movimento e seus ideais, e nos consideramos vitoriosos quando foi tomado o poder, em janeiro de 1835, porém, quando os cabanos chegaram ao governo, muita coisa mudou. A partir desse momento a sociedade cametaense se colocou contra os revoltosos”, conta o historiador, ao se referir à morte do pai de Ângelo Custódio de Correia, “filho” ilustre de Cametá, que foi assassinado por membros da Cabanagem em frente à própria casa, após o casamento da filha. “Esse ato marcou a mudança de pensamento do movimento, e por isso Cametá passou a lutar contra os cabanos. Liderados pelo padre Prudêncio, que tinha domínio de estratégias militares, a cidade foi protegida e os revoltosos perseguidos até a morte”, relata Dmitryus Braga.

Cametá foi capital legal da Província durante cerca de doze meses, quando Ângelo Custódio administrava o governo legalista direto da sua cidade natal, paralelamente ao governo instituído pelos cabanos na capital. “Ele era o governador por direito legal, e foi impedido de assumir oficialmente o poder por conta dos revoltosos, porém Ângelo Custódio trouxe parte dos documentos oficiais para cá e daqui respondia à Coroa Portuguesa. Fomos a capital do governo legalista de 15 de maio de 1835 a 13 de maio de 1836”, reitera.

Acervo

A resistência à Cabanagem é lembrada em um grande painel instalado na Praça da Cultura, no centro da Cidade. Perto dali, fica o Museu Histórico de Cametá Raimundo Penafort de Sena, que preserva diversos artefatos da época, como moedas, armas, louças e objetos pessoais de alguns personagens desse período. O museu tem mais de duas mil peças que registram momentos importantes da cidade, fundada em 1635 e declarada Patrimônio Histórico Nacional. 

Em homenagem à musicalidade do município, que tem no Samba de Cacete uma de suas manifestações, o museu exibe uma mostra de CDs e discos de personalidades da cultura local, como Mestre Cupijó, conhecido pelo carimbó de raiz, vastamente difundido no Brasil.

Assassinato do presidente da regência portuguesa ocorreu nas escadarias do Palácio do Governo. Foto: Thiago Gomes/Ag.Pará
Uma obra de mais de R$ 1 milhão também faz parte do acervo do museu: é a tela Cólera Morbus, que não passa despercebida por quem visita o local. Pintada pelo artista Constantino Pedro Chaves da Motta, a obra retrata a visita de Ângelo Custódio Corrêa, que voltava a Cametá para ajudar a população acometida por uma epidemia de cólera. Essa é uma das poucas peças preservadas do artista do século XIX, que também assina uma ilustração do monarca Dom Pedro II, encomendada para compor os salões da Assembleia Provincial, que pertence atualmente ao Conselho Estadual de Cultura.

Não é só no museu, porém, que se conhece a cultura cametaense. As ruas exibem a influência portuguesa na arquitetura. Prédios como os da prefeitura municipal, do Grupo Escolar Dom Romualdo de Seixas e do Instituto Nossa Senhora Auxiliadora se mantém imponentes como antigamente, ladeados por largas praças e casarios de azulejos coloridos vindos do Alentejo. As igrejas também marcam a paisagem lembrando um período que o catolicismo era mais do que religião, era um modo de vida. Em poucos passos se chega à Catedral São João Batista e à Igreja das Mercês, ambas projetadas pelo arquiteto bolonhês Antônio Landi, além da Igreja de São Benedito dos Pretos, reconstruída em alvenaria na década de 60, pelo mestre Arlindo Neves. 

A Igreja Nossa Senhora do Perpétuo Socorro é a única do Brasil que segue o projeto das Missões Espanholas. Ela é o portão de entrada para a praia da Aldeia, a mais procurada por turistas e moradores da cidade. A pedagoga Márcia de Oliveira aproveitou o início das férias escolares para curtir o lugar com os filhos. “Agora está calmo, mas vai ficar lotado no meio das férias”, diz, sem economizar elogios à praia que oferece águas calmas e geladas a cinco minutos do centro da cidade. “Sempre que posso venho aqui para descansar, pensar na vida e distrair um pouco”, conta, enquanto espera o almoço em uma das barracas que servem mapará frito, peixe típico da culinária local. “É o melhor de todos”, garante ela, que também destaca a hospitalidade do povo como uma das marcas registradas da cidade.

Cametá tem um complexo de praias, como a da Aldeia, de Pacajá e de Cametá-Tapera, que banham vilarejos distantes a poucos quilômetros da sede. Quem tem mais tempo para aproveitar as belezas naturais, pode curtir as praias mais distantes, como a da Carapina e a Fazenda, à qual se chega a pé e por estradas de terra, para a alegrias dos que gostam de privacidade e de uma certa exclusividade. 

Barcarena

E por falar em praias, as do município de Barcarena, localizado a 120 quilômetros de Belém, em nada deixam a desejar aos praieiros de carteirinha. A praia do Caripi, com seis quilômetros de extensão, parece se desdobrar em várias. Em um extremo, os barzinhos ficam praticamente na areia, com as águas da Baía do Marajó um pouco mais distantes, ideal para quem curte jogar bola e andar de bicicleta.

O meio da praia é delimitado pelo calçadão onde cadeiras e quiosques estão à disposição do veranista. No outro extremo, a praia já fica mais próxima ao calçadão, ideal para quem está com crianças pequenas ou para pessoas com pouca mobilidade que ainda podem aproveitar trapiche para apreciar a paisagem. 

Foto: Thiago Gomes/Ag. Pará
O cenário paradisíaco do Caripi conquistou o coração de Neuza Leal, que aproveitou as férias de 2014 para conhecer o local e nunca mais deixou a cidade. “Era um destino de férias e acabou se tornando o meu lar. Foi amor à primeira vista. Hoje não me vejo morando em outro lugar”, conta a encarregada de serviços gerais, natural do município de Primavera. Agora é Neuza quem recebe familiares e amigos que vão curtir o veraneio em Barcarena. “Vir me visitar já é uma boa desculpa para passar um tempo por aqui”.

Outra praia bastante procurada é Fazendinha, que traz bares e restaurantes ao longo de toda a extensão, fazendo a festa de quem curte agitação combinada a um bom mergulho nas águas salobras do balneário. A música, mecânica ou ao vivo, é o destaque nesse pedaço do paraíso onde os empreendedores locais se esforçam para que o cliente sempre saia satisfeito.
Há ainda as praias do Conde, Itupanema e Carnapijó, bastante conhecidas do público, e do Maruim, Cuipiranga, Guajarina, Paraíso, Boa Morte, Sirituba, Urucuriteua e Areal, ainda primitivas e pouco exploradas pelo turista. Barcarena também tem rios onde o visitante pode se refrescar no calor do verão paraense. Um deles é o que dá nome à cidade e banha o vilarejo São Francisco Xavier, sede do município até o ano de 1950, nos sete anos seguintes à fundação da cidade, em 1943. O lugar é parada obrigatória no roteiro de quem aprecia a paisagem ribeirinha combinada a uma boa história.

Relíquias

É na igreja do vilarejo que estão guardados os restos mortais do Cônego Batista Campos, paladino das aspirações populares contra os governos opressores que culminou com a revolta da Cabanagem. José Dias contribui com a manutenção da igreja e guarda as chaves da edificação religiosa em casa. “Eu me sinto importante por contribuir com a memória do nosso lugar”, diz.

O professor Luiz Guimarães, especialista nessa história, conta que Batista Campos se escondeu em um sítio próximo ao vilarejo, em um furo de rio que hoje é conhecido como Arrozal, quando fugia das tropas do governo, vindo a morrer naquele local. Os registros históricos afirmam que Batista Campos morreu no último dia do ano de 1834, devido a uma inflamação decorrente de um corte em uma espinha carnal no queixo. “Como não foi permitido que ele fosse sepultado em Belém, seu corpo foi enterrado próximo à igreja paroquial da freguesia de Barcarena”. Embora o religioso não tenha vivido para ver a Revolução Cabana, sua história de combate em favor da causa popular fez com que ele se tornasse uma mártir do movimento cabano.

O professor ressalta que os primeiros registros escritos da história da Cabanagem tratam o movimento como motim e os combatentes como simples revoltosos. Os próprios cabanos não usavam essa denominação, que provém do fato dos combatentes morarem em residências simples, que se assemelhavam a cabanas. “O título ‘Cabanos’ só veio com o período Republicano, quando os revolucionários passaram a ser vistos como heróis da pátria. A literatura desse período é que passa a usar essa denominação”, comenta.

A memória do cônego, assim como da Cabanagem, somente passou a ser retomada como movimento heroico na virada do século XIX para o XX. Foi com a instalação da República que esses personagens ligados à Cabanagem passaram a ser exaltados e suas memórias, revisitadas. “Em 1897, com a ideia de revigorar os mártires que lutaram contra o Império no Brasil, o Partido Republicano Paraense mandou exumar o corpo do Cônego Batista Campos para colocá-lo em lugar de honra dentro da igreja”, lembra Guimarães sobre a memória do chefe do Partido Filantrópico, que foi perseguido por suas ideias, preso e deportado da província várias vezes, mas sempre voltava ao combate contra o violento governo, fosse como liderança política ou através da imprensa, com a publicação de um jornal em que disseminava notícias contra o governador da Província.
“Barcarena é a única cidade com núcleo urbano que relembra os cidadãos que fizeram parte desse importante momento histórico do Pará. Todas as ruas da Vila dos Cabanos são nominadas com personagens reais que integraram esse movimento, como Antônio Vinagre, Germano Aranha e Domingos Onça”, analisa Luiz Guimarães, ao admitir que essas personalidades não têm o reconhecimento dos moradores da vila, a maioria proveniente das regiões Nordeste, Sul e Sudeste do país para trabalhar no complexo industrial do município.

O primeiro governo cabano teve como presidente Félix Antônio Clemente Malcher, que governou de 7 de janeiro a 19 de fevereiro de 1835, até ser deposto e preso pelos próprios companheiros. Francisco Antônio Vinagre assumiu a presidência do dia 21 de fevereiro ao dia 20 de junho do mesmo ano, quando concedeu o poder ao presidente nomeado pela Corte Brasileira, Manoel Jorge Rodrigues, após intervenção da igreja e em troca de anistia aos revolucionários, entre outras exigências.

“O problema foi o novo presidente, que além de não cumprir o acordo, ainda mandou prender Vinagre. Isso causou uma nova revolta que incitou várias marchas de invasão à Belém, como a que saiu de Vila do Conde, Barcarena, capitaneada pelo jovem cearense Eduardo Angelim, de apenas 19 anos, que se tornou o último governador Cabano, em 1836”, relembra o professor Luiz Guimarães.

Belém

A Cabanagem foi o primeiro movimento popular que chegou ao poder no Brasil. A ascensão foi marcada pelo assassinato do presidente da regência portuguesa, Bernardo Lobo de Sousa, na escadaria do Palácio do Governo, cujo prédio hoje abriga o Museu do Estado do Pará (MEP), localizado em frente à Praça Dom Pedro II, onde os cabanos acampavam e se reuniam em assembleia com as roupas vermelhadas tingidas com casca de murici, conforme relata o jornalista e escritor Iran de Souza, no livro “Crônica Histórica e Sentimental de Belém do Pará”.
Para o escritor, a Cabanagem “é um capítulo importante de uma revolução social sem precedentes na nossa região, que deveria ser melhor lembrada como exemplo de anticonformismo numa cidade que com o tempo foi ficando tão conformista como é até hoje”. Iran de Souza evoca a necessidade do olhar mais atento às marcas desse período na capital paraense, que na época era capital da Província do Grão Pará, abrangendo os Estados do Amazonas, Amapá, Roraima e Rondônia.
“As pegadas da Cabanagem estão em toda cidade. Muitas vezes somos nós que não queremos ver. O MEP é, sem dúvida, um dos maiores registros desse tempo por ser o centro do poder, mas temos o Forte do Presépio, a Igreja da Sé, a Praça do Carmo – que foi cenário de um combate sanguinário – e vários outros”, cita o jornalista, para quem esse pode ser um fio condutor de um bom passeio pelo centro da cidade, onde os principais prédios públicos integram o Complexo Feliz Lusitânia, que compreende o entorno da Praça Frei Caetano Brandão, ao largo da qual estão localizados museus que ocupam os prédios históricos.

Resgate

A professora doutora Eliana Ramos concorda que a população conhece muito pouco sobre o movimento cabano e a história de Belém. “O paraense tem isso. Ele não conhece a história das ruas por onde ele pisa, e isso é uma falha muito grande nossa”, lamenta. Ela acredita que o passeio turístico pode ser incrementado com uma visita ao Arquivo Público, um dos maiores depositários dos documentos produzidos à época da Cabanagem; ao conjunto dos mercedários – que inclui a igreja das Mercês – e à Estação das Docas, que mantém resquícios do motim São Pedro Nolasco, um dos primeiros a cair com o ataque cabano.

“Belém era muito protegida. Além do Forte do Castelo e do motim de São Pedro, havia a Fortaleza da Barra (no bairro do Reduto) e o trem de guerra que guardava o paiol, armas e munições (onde é o conjunto dos mercedários). O fato dos cabanos terem dominado essas fortalezas e o Palácio do Governo, símbolo instituído do poder imperial, mostra que eles tinham muita clareza do aspecto político da revolução”, destaca Eliana Ramos.

A Cabanagem foi reprimida sob forte ataque militar liderado pelo presidente nomeado pelo Império, Francisco José de Souza Soares de Andrea, que com o apoio de tropas europeias compostas por mercenários, assumiu o poder em abril de 1836, depondo o cabano Eduardo Angelim. Mesmo sem comandar a província, os cabanos permaneceram na luta. O império usou o poderio militar para sufocar a revolta e promoveu um extermínio em massa da população paraense até o ano de 1840. Estima-se que cerca de 40% dela tenha morrido no conflito.

Hoje o líder da legalidade e o líder cabano, Francisco José de Andrea e Eduardo Angelim, respectivamente, convivem lado a lado na parede do MEP, em uma sala dedicada ao movimento que, brevemente, vai ocupar outras duas salas, como adianta a antropóloga Deisiane da Costa, que está à frente da expansão da exposição. “O movimento veio mexendo com a memória da população ao longo dos séculos. A importância de se ter isso no museu é permitir essa ponte com o passado para que não se perca a memória no futuro desse evento, que tem enorme relevância para a população. A ideia é que a gente consiga deixar didáticas as informações que vão ocupar essas duas salas”, explica, ao contar que parte do acervo que pertencia ao Memorial da Cabanagem vai integrar a exposição.
O Memorial da Cabanagem foi construído pelo renomado arquiteto brasileiro Oscar Niemeyer no período das comemorações dos 150 anos da revolução cabana. É a única obra do mestre modernista no Estado. O memorial tinha um pequeno acervo com peças que remontavam ao período revolucionário. Mesmo com a desativação do espaço, a obra permanece, deixando o registro da Revolução Cabana na entrada da cidade.
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