A região amazônica produz mais de um quarto da energia do Brasil. Ainda assim, centenas de milhares de famílias estão fora da rede elétrica e dependem de custosos geradores a diesel para produzir eletricidade.
Enquanto crescia, Maria de Fátima Batista costumava estudar no escuro, usando uma vela ou lanterna para iluminar. Não havia eletricidade na comunidade ribeirinha onde ela mora, em Rondônia.
Hoje, aos 58 anos, Maria de Fátima, sua família e o restante da comunidade Terra Firme, que fica às margens do Rio Madeira, contam com energia elétrica 24 horas por dia por meio de painéis solares e baterias instaladas no ano passado pela empresa local (re)energisa, braço de energia renovável do Grupo Energisa do Brasil.
Seus netos não precisam mais de vela ou lanterna para estudar quando escurece, ela pode agora congelar os alimentos — inclusive os produtos de panificação que vende —, e a comunidade enfim se comunica em tempo real com as autoridades locais.
“A gente pode usar o freezer, pode usar TV, até a internet também”,
diz ela, sentada à mesa no pátio de sua casa de tijolos vermelhos.
Mas para muitas outras comunidades ribeirinhas e indígenas que vivem fora dos grandes centros urbanos da Amazônia, o acesso a eletricidade constante e limpa ainda é um grande desafio.
Segundo dados oficiais, cerca de 425 mil famílias na Amazônia não estão conectadas à rede elétrica — número que pode ser ainda maior, dado que o último censo foi em 2010.
A falta de acesso à rede elétrica tradicionalmente levou comunidades desconectadas na Amazônia a adotar geradores a diesel caros e poluentes, com custos de combustível já altos devido à distância, já que aumentos substanciais no diesel são comuns fora das áreas urbanas. Isso geralmente significa que a energia é intermitente, causando interrupções nas atividades familiares e de lazer, bem como nas comunicações e pequenos negócios.
Especialistas elogiam o potencial da energia solar para fornecer energia limpa, constante e acessível para comunidades na Amazônia, mas, apesar da crescente escala e acessibilidade, desafios significativos permanecem.
Terra Firme era um território de extração de borracha durante o boom de meados do século 19 e hoje abriga 27 famílias que cultivam produtos como mandioca, banana, feijão e batata-doce, além de produzir farinha para vender em Porto Velho.
Para chegar lá, é uma viagem de barco de duas horas a partir de Porto Velho ao longo do Rio Madeira — invadido por garimpeiros ilegais nos últimos anos. A Mongabay presenciou dezenas de plataformas de dragagem de mineração em novembro, durante uma visita que contou com o apoio logístico da prefeitura de Porto Velho por meio da Superintendência Municipal de Integração e Desenvolvimento Interdistrital (SMD).
Cada residência em Terra Firme possui uma unidade de energia solar “autônoma”, composta por painéis solares e baterias. Essa infraestrutura é resistente, requer pouca manutenção e é mais robusta que as linhas de transmissão, que podem ser derrubadas por tempestades, e também tem baixo impacto, reduzindo os riscos de desmatamento.
Numa manhã de domingo, Flávio, filho de Maria de Fátima, liga uma máquina de cortar cabelo em uma tomada na parede e se prepara para aparar o cabelo de um jovem sentado em uma cadeira de barbeiro. Ao lado dele, há um quadro com a tabela de preços dos diferentes cortes e um número de WhatsApp. “Um ano atrás eu estava na cidade, trabalhando. A energia chegou aqui e a gente voltou”, diz ele. “Voltei para trabalhar aqui e agora estou pensando em montar um negócio melhor.”
Luz para todos
Diferentes administrações federais no Brasil tentaram resolver o problema de acesso à eletricidade na Amazônia. Em 2000, o presidente Fernando Henrique Cardoso criou um programa chamado Luz no Campo para eletrificar áreas rurais no Brasil. O programa foi atualizado e ampliado em 2003, no primeiro mandato de Lula, quando passou a se chamar Luz para Todos.
Segundo dados oficiais de novembro de 2022, mais de 16 milhões de pessoas foram beneficiadas pelo programa de Lula, que já foi prorrogado várias vezes. Mais recentemente, em 2020, o governo Bolsonaro lançou o Mais Luz para a Amazônia, um programa complementar criado especificamente para fornecer energia solar a famílias que vivem na região amazônica.
Foi através deste último programa que chegaram os painéis solares para Maria de Fátima e outros em Terra Firme. De acordo com o Ministério de Minas e Energia, 8.828 unidades foram instaladas até novembro de 2022, beneficiando cerca de 35 mil pessoas, ao custo de 508 milhões de reais. Até 2030, o projeto espera atingir mais de 850 mil pessoas.
Em Rondônia, o grupo Energisa é responsável pela entrega dos kits solares do programa e por sua manutenção. O sistema permite o armazenamento de energia por meio de baterias carregadas durante o dia para uso noturno. As famílias agora pagam uma conta mensal de luz por meio de um aplicativo fornecido pela empresa Voltz, que também atua como um banco digital, oferecendo crédito e outros serviços financeiros de bancos tradicionais.
“A partir do momento em que você traz eletricidade, outras coisas vêm junto”, diz Gustavo Buiatti, diretor de desenvolvimento, negócios e tecnologia da (re)energisa. “Hoje, os moradores pagam a energia, que é mais barata e limpa, por meio de um aplicativo no celular”.
A Energisa também tem um projeto no Acre, próximo à fronteira com o Peru, em uma comunidade chamada Vila Restauração, que combina painéis solares com geradores a biodiesel. O projeto ganhou um prêmio no Solar & Storage Live Awards em 2022 de melhor projeto internacional de painel solar.
Buiatti afirma que o projeto pode ser replicado e transferido para qualquer lugar do mundo. Os membros da comunidade são treinados para a manutenção, gerando renda extra e autonomia.
“Com este sistema, eles são os guardiões de sua própria comunidade”, ele afirma. No entanto, Maria de Fátima diz que ninguém em sua comunidade foi treinado para consertar os painéis, e que resolver problemas técnicos costuma ser difícil e demorado .
Em nota, a (re)energisa disse à Mongabay que mantém equipes disponíveis para se deslocar até a comunidade para fazer manutenção e restabelecer o funcionamento dos painéis o mais rápido possível. No entanto, a empresa disse que tem trabalhado na “inovação em serviço” por meio da capacitação de moradores, “considerando os desafios de acesso a algumas regiões beneficiadas pelos programas de microrrede”.
ONGs ajudam a preencher a lacuna
A energia solar recentemente ultrapassou a energia eólica, tornando-se a segunda fonte de energia mais importante no Brasil depois das usinas hidrelétricas. No início deste mês, Manaus inaugurou a maior usina de energia solar da região Norte. Nos últimos anos, as instalações de painéis solares se expandiram em comunidades em toda a Amazônia por meio de iniciativas públicas, privadas e lideradas pelo terceiro setor.
Em parceria com a empresa de baterias de lítio Unicoba, a ONG Foundation for Amazon Sustainability (Fundação para a Sustentabilidade da Amazônia, em uma tradução livre) instalou recentemente painéis solares na vila de Santa Helena do Inglês, no Rio Negro, a cerca de 60 quilômetros de Manaus, retratada em reportagem da Mongabay no ano passado.
A WWF Brasil montou um projeto de painel solar na região da Vila Limeira, em Lábrea, no sul do Amazonas, região que apresenta altos níveis de desmatamento.
Paulo Junqueira, coordenador do Instituto Socioambiental (ISA), vem trabalhando com as comunidades indígenas do Xingu em um projeto de energia solar que começou em 2018. Ele diz que as comunidades estão experimentando muitos benefícios com a energia solar, como trabalhar na apicultura à noite, quando é mais fácil trabalhar com as abelhas. A energia solar também eliminou o ruído constante dos geradores a diesel. Ele observa, ainda, que o acesso à eletricidade teve um impacto profundo nas práticas culturais.
“Antigamente, quando o pessoal caçava, tinha uma distribuição. Quem caçou escolhia o pedaço, e o resto era distribuído”, conta ele. “Agora, em vez de fazer a distribuição, que era uma questão de generosidade e troca, a carne vai para o freezer”.
Paulo Junqueira, coordenador do Instituto Socioambiental (ISA)
Mandioca: uma alternativa melhor
Rubem Souza, pesquisador da Universidade Federal do Amazonas, argumenta que, embora a Amazônia tenha potencial para todas as fontes renováveis de energia, muitas tecnologias solares têm uma grande quantidade de emissões de gases de efeito estufa incorporadas em sua cadeia de suprimentos — desde a mineração e purificação de matérias-primas até a montagem dos diferentes componentes e seu envio para a Amazônia.
Ele avalia que o bioetanol de produtos nativos, como a mandioca, representa uma alternativa melhor: “Você tem a condição de montar toda a cadeia produtiva local, desde o plantio, que vai fixar o homem no campo e produzir o etanol, e aí você pode escoar isso para a cadeia de transporte ou para geração de energia elétrica.
“Além disso, você pode ter um plantio consorciado da cultura da mandioca com feijão, com milho”, acrescenta. “Na cadeia de beneficiamento da mandioca, você também tem a possibilidade de produzir ração, de produzir cosméticos da folha da mandioca. Enfim, não se perde absolutamente nada.”
Souza também aponta que a expansão do acesso à energia em toda a Amazônia fez pouco para melhorar os meios de subsistência sem um plano de desenvolvimento coerente: “As pessoas deixam de passar fome no escuro e passam a passar fome no claro”.
Barragens e mineração ilegal
As usinas hidrelétricas na Amazônia produzem 26% da energia do Brasil, mas pouco disso vai para as comunidades locais.
“Os grandes projetos de produção de energia na Amazônia sempre estiveram olhando para a demanda do país”, afirma Evandro Mateus Moretto, pesquisador da Universidade de São Paulo. “Dois exemplos são o Rio Madeira e o Rio Xingu. Essas grandes hidrelétricas são modelos de geração centralizada que precisam de infraestrutura para a transmissão; elas estão olhando para demandas no cenário nacional e olhando menos para as necessidades do lugar”.
“Uma das consequências disso é que, em Porto Velho, onde estão [as hidrelétricas de] Jirau e Santo Antônio, e em Altamira, onde está Belo Monte, você tem as maiores tarifas de energia elétrica do Brasil, o que é um tanto indecente. Escandaloso, para dizer o mínimo”, diz Moretto.
A casa ribeirinha de Maria de Fátima Batista está localizada na área de influência das barragens de Jirau e Santo Antônio, inauguradas durante a gestão de Dilma Rousseff, criticadas pela eficiência e impactos sociais.
Nos últimos anos, como um impacto direto dessas barragens, o abastecimento de peixes tornou-se mais escasso, e muitas comunidades ribeirinhas ao longo do Rio Madeira passaram a trabalhar em plataformas ilegais de mineração de ouro, que agora ocupam o rio.
A Mongabay visitou Terra Firme logo após uma grande operação policial no Rio Madeira que destruiu mais de 100 plataformas de mineração. Algumas pessoas na comunidade e outros vizinhos possuíam, trabalhavam ou eram parceiros dessas plataformas. De Terra Firme, avistava-se um grande depósito de areia causada pelo garimpo ilegal em uma das margens do rio.
Especialistas notaram os profundos impactos sociais negativos que o comércio ilegal de mineração teve nas comunidades locais, incluindo Terra Firme, como aumento da violência, prostituição e uso de drogas.
E, embora os netos de Maria de Fátima não precisem estudar à luz de velas, eles têm dificuldade de chegar à escola porque a comunidade está há alguns anos sem acesso ao transporte escolar, problema agravado pela pandemia.
O acesso à água também é outro problema de longo prazo, e a comunidade ainda aguarda a instalação de cisternas.
De volta à comunidade de Terra Firme, ao cair da noite, os familiares sentam-se à mesa conversando sobre a recente eleição e tocando música em seus celulares. Eles discutem a possibilidade de fazer um churrasco no dia seguinte com a carne de uma anta que caçaram dias antes e guardaram no freezer.
“Este é um lugar de paz, um lugar bom de se morar. Um lugar onde eu criei os meus nove filhos, todos eles aqui”, comenta Maria de Fátima.
*O conteúdo foi originalmente publicado por Mongabay, escrito por Ignacio Amigo, Sam Cowie e Avener Prado e traduzido por Thaissa Lamha.