Segurança Pública: responsabilidade de todos

É preciso olhar a segurança pública com outros olhos, não mais, apenas, com a à ideia de defesa do Estado e da ordem econômica e social.

Encerramos o artigo anterior desta coluna, intitulado o que é segurança pública, com a seguinte frase: “… todos nós somos responsáveis pela segurança pública, pelo nosso bem-estar e dos demais membros da sociedade“.

Há alguns meses publiquei um artigo em parceria com o Professor Doutor Fábio Hecktheuer onde, entre diversos tópicos, abordamos a responsabilidade de toda a sociedade com a segurança públicai. O momento é oportuno para voltarmos a discutir o assunto.

É preciso olhar a segurança pública com outros olhos, não mais, apenas, com a à ideia de defesa do Estado e da ordem econômica e social. No artigo anterior afirmamos que com o advento da atual Constituição Federal, os direitos e garantias fundamentais ganharam destaque e a noção de segurança pública foi mudando, ganha força a ideia de uma segurança pública voltada para garantir a dignidade da pessoa humana. O conceito forjado na Constituição de segurança pública, sob a responsabilidade das polícias, deixa de ser suficiente. Passa a ser necessário o envolvimento do Estado como um todo.

Se segurança pública é dever do Estado, exercido, em regra, pelos organismos policiais, é, também, como estabelece o caput do artigo 144 da Constituição Federal, responsabilidade de todos. Cada um dos indivíduos que integram a sociedade precisa assumir sua responsabilidade, contribuindo para a segurança coletiva. É preciso que todos tenham consciência de que segurança pública é algo sistêmico, onde cada pessoa, órgão e instituição tem papel importante no funcionamento desse sistema.

Não se pode esperar que o Estado faça tudo, implemente as ações necessárias para promover a segurança pública, se a todo tempo a população sabota as ações promovidas pelo governo. É como a questão da salubridade e limpeza urbana. De que adiante o Estado promover a limpeza urbana se a população continua a jogar lixo nas ruas, entupindo os bueiros e comprometendo a saúde pública.  

Outro exemplo que podemos dar, mais atual, é o comportamento de muitas pessoas que desrespeitam as regras sanitárias de combate à pandemia do COVID-19: isolamento social, uso de máscara, distanciamento social, funcionamento de comércios e festas (aglomerações). Muitas pessoas, lamentavelmente, provocaram aglomeração nas das eleições, no réveillon e no carnaval, promovendo a proliferação dos vírus e aumentando as mortes pela COVID-19. Todos, individualmente, têm responsabilidade no combate a pandemia, que, como vimos anteriormente, tornou-se questão de segurança pública.

Aglomeração, apesar de decreto proibir aglomerações – Foto: Tomaz Silva / Agência Brasil

A família, por sua vez, também tem importante papel na promoção da segurança pública, ao transmitir valores morais, educação e cultura aos seus filhos. A escola, da mesma forma, também tem papel importante, pois transmite conhecimento e valores aos alunos. As Prefeituras, em que pese a segurança pública seja, em regra, exercida pelos organismos policiais que integram a União e os Estados, também tem importante papel, promovendo a limpeza urbana, iluminação pública, gerando empregos, oferecendo escolas, boas estradas etc.

Quando afirmamos que segurança pública é responsabilidade de todos, não podemos mais falar apenas de políticas de segurança pública, mas sim de políticas públicas de segurança, pois são expressões diferentes, conforme ensina Oliveira: Política de segurança pública é expressão referente às atividades policiais, é a atenção policial ‘strictu sensu‘, ao passo que política pública de segurança é expressão que engloba as diversas ações, governamentais ou não governamentais, que sofrem impacto ou causam impacto no problema da criminalidade e da violênciai.

Cada vez mais fica evidente que a segurança pública para ser eficiente, eficaz e, principalmente, efetiva precisa de políticas públicas que representem planejamento estratégico sistêmico. Mas esse planejamento estratégico só funcionará se tiver o apoio da população. O povo não pode mais ser um mero coadjuvante na formulação e implementação das políticas públicas de segurança. A participação popular é imprescindível.

Foto: Divulgação / Governo de Rondônia

Ocorre, no entanto, que o fato da população participar e assumir sua responsabilidade na promoção da segurança pública não significa que o Estado vá se eximir do seu dever, transferindo toda a responsabilidade para a população. É o que estamos assistindo com os recentes Decretos presidenciais que ampliam o rol de categorias com direito a posse e porte de armas de fogo.

Essas medidas de liberalização de armas de fogo para a população são preocupantes. Transferir ao povo a responsabilidade de promover sua própria segurança é reconhecer a incompetência do Estado em promover a segurança pública. Seria melhor se houvesse mais investimentos na área da segurança, a fim de que os organismos policiais pudessem cumprir eficientemente sua missão constitucional. Além do mais, o povo brasileiro não tem demonstrado maturidade e responsabilidade para portar armas. Um povo que, lamentavelmente, não tem respeito pela autoridade policial, acostumado a resistir a prisão, desacatar e desobedecer, brigar no trânsito, responder com violência às ofensas, provavelmente usará a arma de forma irresponsável, assim como fazem com os veículos automotores ao dirigirem após ingestão de bebidas alcoólica. Muita gente armada é sinal de muita violência. 

Foto: Arquivo / Agência Brasil

A população também é responsável pela segurança pública, mas isso, no sentido de contribuir com o Estado na implementação das ações por ele formuladas no sentido de prevenir a prática de crimes. Quanto a repressão aos crimes, as ações devem ser realizadas pelo Estado, por meio dos organismos policiais que integram o sistema de segurança pública, pois possuem conhecimento, competências e habilidades para lutar contra os criminosos.

A responsabilidade é de todos, mas o dever é do Estado. Assim sendo, não podemos deixar que a proteção da população fique a cargo dela mesma ou do acaso, como descrito na música Epitáfio, dos Titãs:

“(…) O acaso vai me proteger. Enquanto eu andar distraído. O acaso vai me proteger. Enquanto eu andar (…)”.

Epitáfio, Titãs

A segurança da população não pode ficar a cargo do “acaso” ou da “sorte”. O Estado tem esse dever, o “dever de segurança”, que impõe ao Estado o dever de proteger o indivíduo contra ataques de terceiros mediante adoção de medidas diversas.

Nem o Estado pode se eximir de seu dever, nem a população pode se eximir de sua responsabilidade. Infelizmente tem sido comum todos se eximirem ou transferirem seus deveres e responsabilidades para outros.

Foto: Reprodução / internet

No caso da população, tem sido comum eximir-se e esperar que “salvadores da pátria” surjam para resolver todos os problemas. Em alto e bom tom as pessoas perguntam: “Quem irá nos salvar?”, parafraseando os personagens do famoso seriado “Chaves”. No célebre seriado de TV, após se perguntar “quem irá nos salvar?” surge o salvador, o herói, ninguém mais, ninguém menos que o “Chapolim Colorado”.

Não! Não podemos esperar que o Chapolim Colorado nos salve, nem que o acaso nos proteja. Não podemos esperar “salvadores da pátria”. Não podemos esperar que políticos, juízes, promotores de justiça ou policiais sejam os “salvadores da pátria”. Muitos desses “atores” querem ser os heróis, os “salvadores da pátria”. Ocorre, no entanto, que na busca incessante pelo protagonismo, fama e reconhecimento, esses “salvadores da pátria” podem se transformar no “Chapolim Colorado”, ou seja, as vezes provocam mais confusão do que necessariamente ajudam. 

 É importante que os integrantes dessas instituições públicas façam seu trabalho da forma mais eficiente possível, em respeito ao princípio constitucional previsto no artigo 37 da Carta Magna. Devem respeitar, inclusive, os demais princípios da administração pública previstos na norma retro mencionada, tais como: legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade.

O protagonismo da luta contra corrupção, e, consequentemente, à criminalidade, deve ser do povo. Enquanto o povo não assumir seu papel de protagonista das transformações sociais, exigindo do Estado o fiel cumprimento de seus deveres e fiscalizar suas ações, nada vai mudar de forma efetiva.   

LESSA, S. A., & HECKTHEUER, F. (2019). Segurança pública como direito fundamental: o atual cenário de crise. Revista Justiça Do Direito, 33(3), 165-188. https://doi.org/10.5335/rjd.v33i3.10644

OLIVEIRA, Ana Sofia S. apud FILOCRE, Lincoln da Silva D’Aquino. Direito de Segurança Pública: Limites Jurídicos para Políticas de Segurança Pública. p.83.


Sávio A. B. Lessa é Doutor em Ciência Política; pós graduado em Ciências Penais, Segurança Pública, Direitos Humanos e Direito Militar; Advogado Criminalista; Professor de Direito Penal e Processual Penal da FCR; Pesquisador do PROCAD/MIN. DEFESA; e Coronel da Reserva da PMRO.




Publicidade
Publicidade

Relacionadas:

Mais acessadas:

Pesquisa de professora paraense recebe Prêmio ‘Ciência pela Primeira Infância’

O estudo teve o propósito de pautar discussões acerca da garantia dos direitos à população infantil quilombola na Amazônia.

Leia também

Publicidade