Em um trecho do discurso, referindo-se aos militares, o gênio profere a célebre frase: “não sois máquinas, homens é que sois“.
As redes sociais, lamentavelmente, têm divulgado informações distorcidas sobre o ocorrido, tentando dar uma conotação política ao episódio. Alguns usam o episódio para incitar os policiais militares a não obedecerem às ordens dos governadores que determinaram medidas rígidas para combater o avanço da pandemia, tais como: prisão de pessoas, fechamento de estabelecimentos comerciais e de praias etc. Querem fazer uso política de uma tragédia pessoal.
Obviamente que é muito cedo para se saber o que de fato aconteceu e quais motivos levaram o policial militar Wesley Soares Góes, que trabalhava na 72ª CIPM, distante 250km de Salvador, a sair de sua cidade, fardado e armado de fuzil, e deslocar-se à Salvador para praticar um ato transloucado desses. A PMBA vai apurar os fatos em IPM e em breve saberemos o que está por trás disso. No entanto, pode-se especular, com base no comportamento do Soldado Wesley que ele não estava psicologicamente bem. É possível que não tenha aguentado a pressão e estresse do trabalho. A atividade policial é considerada uma das mais estressantes do mundo devido ao alto risco de vida e tensão bélica constante. Muitos não aguentam essa pressão e entram em depressão, muitas vezes associada ao alcoolismo e drogas. Há aqueles que chegam ao extremo de praticarem suicídio.
Em que pesem os riscos de morte, a disciplina rigorosa e os danos existenciais, todos são voluntários para essa vida, pois o serviço policial militar não é obrigatório, mas sim voluntário, cujo ingresso na carreira se dá por concurso público. O processo seletivo para ser policial militar precisa ser rigoroso e criterioso, de forma a selecionar os mais inteligentes, capazes, saudáveis e fortes física e psicologicamente). Se não for assim, ele não vai dar conta do serviço e da pressão. Se ele não aguentar a pressão, vai explodir, ter um “dia de fúria”.
Por usarem os mesmos uniformes, comportarem-se de forma semelhante, marcharem juntos e iguais, os policiais militares não são robôs; não são máquinas; são homens, mulheres, pais, mães, filhos, irmãos, tios, sobrinho etc.
É impossível não se lembrar da célebre frase do gênio Charles Chaplin, interpretando Carlitos no filme “O Grande Ditador”. Nesse filme Carlitos era confundido com Hitler e acabava no lugar do ditador, proferindo um magnífico discurso exaltando a paz e o amor.
Em um trecho do discurso, referindo-se aos militares, o gênio profere a célebre frase: “não sois máquinas, homens é que sois“.
As corporações militares, altamente disciplinadas, são vistas como máquinas do aparelho estatal, voltadas para a defesa da lei, da ordem, da soberania nacional e das instituições democráticas. Alguns confundem “disciplina” com “obediência cega”. Em razão disso, os militares acabam sendo tratados, principalmente pelos governantes, seus comandantes in chefes, como verdadeiros robôs, máquinas feitas para obedecer. Ocorre que disciplina não é obediência cega, mas sim, respeito às leis, valores e princípios que servem de alicerces para a valorosa instituição militar. Obediência cega, seria obedecer a todas as ordens, mesmo que ilegais ou absurdas e desarrazoadas, e isso nada tem a ver com hierarquia e disciplina militar, mas sim com subserviência. Os militares não são máquinas, são seres humanos, senhores de deveres e de direitos, inclusive de “direitos humanos”, pois são tão humanos quanto qualquer um do povo.
Os militares são importantes para a existência do Estado, imprescindíveis para que cumpra com sua finalidade, ou seja, proteger a sociedade e promover o seu bem-estar social. Defender os valores imprescindíveis para a existência da sociedade e do Estado, é uma tarefa dura, muito árdua, que exige muito sacrifício. Muitos chegam a sacrificar a própria vida. São poucas as pessoas dispostas a se sacrificar em prol da sociedade, da soberania nacional, da lei e da ordem e das instituições democráticas.
Algumas pessoas abnegadas, para preservar a sociedade, o Estado, e os valores essenciais a sua existência, alistam-se nas fileiras das Corporações Militares para lutarem contra toda e qualquer ameaça. Essas pessoas, homens e mulheres, dedicam suas vidas, de forma quase sacerdotal, à defesa desses valores e instituições.
Lamentavelmente, o sacrifício dessas pessoas não tem sido devidamente reconhecido e, muitas vezes, são tratados com enorme ingratidão, tanto pela sociedade quanto pelos governantes. Isso não é de hoje, mas desde os primórdios das instituições militares. Pode não haver o devido reconhecimento e gratidão, mas existe muita cobrança, principalmente nos temos de crise e desordem social. É exatamente o que estamos vivenciando hoje, a maior crise sanitária do mundo, com reflexos em todos os setores, do social ao econômico. A crise sanitária virou questão de segurança pública, onde as corporações militares têm sido muito cobradas. Afinal, os militares são “pau-pra-toda-obra”. Pelo menos é assim que pensam os governantes.
A sociedade, lamentavelmente, por causa do erro de alguns policiais militares acaba por ver todos os integrantes das corporações como instrumento dos abusos violadores dos direitos humanos por parte do Estado. Ocorre, no entanto, que esses mesmos policiais também são vítimas do próprio Estado. Sobre esse tema, escrevemos um artigo intitulado “Os Militares, o Estado e o Contrato Social”, em parceria como o Prof. Dr. Moisés Goes. Nele abordamos o policial militar como detentor de direitos humanosi. Diante do episódio ocorrido em Salvador, BA, com o Soldado Wesley, é importante retomar o tema.
Afinal, os militares também são seres humanos, sendo assim, também sofrem com o tratamento desumano, cruel e indigno que o Estado lhes dispensa. É justo que o Estado cobre rigorosamente os muitos deveres dos militares, mas é justo, também, e necessário, que preserve e respeite os poucos direitos que lhes restam. O tratamento indigno consiste exatamente em não respeitar os direitos e prerrogativas dos militares e a submetê-los a condições desumanas de trabalho. Neste caso não estou me referindo a escalas de serviço, mas sim a absoluta falta de estrutura e aparelhamento de algumas corporações policiais militares para combater a criminalidade, tornando a luta desigual e aumentando o risco (probabilidade) de morte dos combatentes.
Ao longo dos últimos anos os militares, principalmente os estaduais, tem perdidos direitos estatutários, previdenciários e remuneratórios. É preciso que haja uma compensação pela renúncia ao exercício da cidadania plena, à servidão (não confundir com subserviência) e ao risco de vida. Uma forma de compensar seria garantindo um salário justo e condigno, resgatando direitos perdidos, garantindo os direitos atuais – e cumprindo-os, obviamente –, além de uma previdência compatível com as peculiaridades da carreira militar (policial) – carreira típica de estado.
Certo vez li uma frase de Bertold Brecht que dizia: “Do rio que tudo arrasta se diz violento, mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem”i. Ao ler essa frase lembrei-me dos policiais militares. Vi, inicialmente, como a maioria das pessoas veem, ou seja, os policiais militares como o rio que tudo arrasta, no entanto, tomo a liberdade de ver as margens como o Estado, ente autoritário, insensível, cobrando deveres e negando direitos, comprimindo e sufocando os policiais militares.
Os militares são treinados para suportar tudo, ou quase tudo, prevalecendo o seguinte bordão castrense: “o militar é superior ao tempo“. Significa dizer que para o militar não há tempo ruim, se a missão for dada ela será cumprida.
Por mais que pensem que os militares são super-homens, capazes de suportar tudo, não é verdade. Os militares são homens como qualquer outro. É verdade que, em regra, são mais fortes, mais resistentes, mais disciplinados e mais preparado, por força de sua formação rigorosa, para as piores adversidades. Ocorre, no entanto, que nem o Super-Homem suporta tudo. Ele tem uma fraqueza, a kriptonita. Os militares também têm suas fraquezas, seus limites para suportar as adversidades. É preciso que os governantes e a sociedade tenham sensibilidade para perceber quando se está chegando ao limite, a fim de agirem antes que esse limite seja ultrapassado. Neste caso as consequências podem ser desastrosas, como muito mais mortes do que ocorreu com o episódio envolvendo o Soldado PM Wesley.
Sávio A. B. Lessa é Doutor em Ciência Política; pós graduado em Ciências Penais, Segurança Pública, Direitos Humanos e Direito Militar; Advogado Criminalista; Professor de Direito Penal e Processual Penal da FCR; Pesquisador do PROCAD/MIN. DEFESA; e Coronel da Reserva da PMRO.