Hipócrates envergonhado: os alunos de medicina precisam respeitar a dignidade humana

Todos os cursos precisam formar seus alunos com respeito à dignidade humana, bem como aos preceitos éticos e morais

Todas as pessoas precisam respeitar a dignidade humana. Todos os cursos precisam formar seus alunos com respeito à dignidade humana, bem como aos preceitos éticos e morais. Mas os cursos de medicina, estes por formarem profissionais que vão lidar com vidas humanas, tratando pessoas em seus momentos mais frágeis, quando estão em alto grau de vulnerabilidades, precisam ter um comportamento ético e moral mais rigoroso, com respeito pleno, total e absoluto à dignidade humana.

Lamentavelmente, temos tido inúmeras notícias de casos abomináveis envolvendo alunos e profissionais de saúde. São relatos de agressões físicas, ameaças, trotes degradantes, estupros e mortes:

Foto: Reprodução/site Diário do Centro do Mundo 

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A cultura de abusos nos trotes e competições universitárias

Ameaças, segregação, humilhações: denúncias de uma tradição imposta por veteranos aos calouros do curso de medicina.

.23 horas atrás 

Foto: Reprodução/internet

Se fizermos uma pesquisa pelos sites da internet encontraremos vários casos ocorridos ao longo dos últimos anos.

Com relação aos trotes violentos e degradantes, e de festas regada a drogas, podemos citar o caso de um calouro do curso de medicina encontrado morto na piscina da FMUSP, em 1999, Edson Tsung, após um trote. Na época, quatro estudantes suspeitos foram ouvidos pela polícia, mas nada foi comprovado.

Há também um caso, em 2014, em que calouros na USP foram recebidos em um ritual envolvendo garotas de programas, onde os alunos eram constrangidos a praticarem sexo coletivo ou a assistirem as relações sexuais.

As meninas têm sido o principal alvo dos trotes promovidos pelos veteranos. Muitas são constrangidas a vestirem roupas provocantes, praticamente despidas, e a pedirem dinheiro nos semáforos para comprar bebidas alcoólicas para os veteranos. Há, inclusive, acusações de estupro de alunas embriagadas, o que caracteriza estupro de vulnerável.

Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:

Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.

§ 1o. Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.

Código Penal

Foto: Instagram/Reprodução

Desde então, os casos vão se repetindo, sem que nada seja feito para mudar esse cenário.

Recentemente escrevemos um artigo condenando os trotes violentos e degradantes, sob o título: Chega de trotes universitários que ofendem a dignidade das mulheres. Neste artigo demos enfoque às mulheres vítimas desses trotes: 

 Algumas meninas pareciam constrangidas em fazerem o que os veteranos mandavam, enquanto outras pareciam não se incomodarem. Lamentavelmente isso deixam claro um outro tipo de ofensa às mulheres: a objetificação. As meninas acabam sendo usadas pelos veteranos como objetos sexuais para atiçarem e satisfazerem a libido dos motoristas homens, a fim de que estes deem dinheiro para as meninas, que serão usados para eventos regados a álcool, onde, lamentavelmente, algumas meninas são embriagadas, e as vezes abusadas.

por Autor

Foto: Reprodução/internet

Ocorre, no entanto, que as vítimas desses trotes não são apenas as meninas, mas todos os calouros, de ambos os sexos. Além dos casos de estupros e trotes violentos que chegam a matar, há inúmeros casos de crimes de “constrangimento ilegal”, onde os veteranos ameaçam os calouros, ou os alunos mais modernos que eles, para fazerem o que os veteranos querem, sob pena de serem prejudicados em suas atividades acadêmicas e profissionais, como residência e plantões médicos. Os veteranos ameaçam prejudicar os futuros médicos contra indicando-os para os futuros empregos. Ameaçam persegui-los durante o curso de medicina, assediando-os de todas as formas possíveis, o que caracteriza o crime do art. 146 do Código Penal, dentre outros possíveis. 

 Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda:

Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa.

Art. 146

Os recentes casos divulgados na imprensa nacional, onde alunos de medicina da UNISA aparecem exibindo as partes íntimas durante um jogo de vôlei feminino, causaram grande indignação e expuseram a cultura de violência que permeia alguns cursos de medicina no Brasil. Essa cultura tem refletido no comportamento desses profissionais no mercado de trabalho.

Nesse episódio, claramente conseguimos identificar alguns atos criminosos: importunação sexual e ato obsceno. 

Importunação sexual

Art. 215-A. Praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro:

Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o ato não constitui crime mais grave.

Ato obsceno

Art. 233 – Praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público:

Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa.

Muitos outros fatos têm vindo à tona, principalmente de apologia ao estupro, como por exemplo, um hino cantado em um ato solene de uma turma de medicina da Unisa, cujo está publicado nas redes sociais como sendo a colação de grau da 48ª turma, formada no primeiro semestre de 2021.

Durante o evento, que aconteceu na Sala São Paulo, uma graduanda entoou o seguinte hino com a ajuda dos colegas:

“Xá! Vasca!

Xá! Vasca!

Xavasqui! Xavascá! Xavasqui e acolá!

Enfia o dedo nela que ela vai arreganhar!

O quê? Arre-ga-nhar!

Na rima do pudendo [termo médico que designa a fissura formada pelos grandes lábios da vagina]

Eu entrei mordendo!

É a Med Santo Amaro que está te fodendo!

Medicina! Santo Amaro! Ôoo!”

letra.

A letra desse hino é uma verdadeira apologia ao estupro. E pior, proferida por uma mulher, uma graduanda do curso de medicina. É possível que ela tenha sido coagida a cantar o referido hino, ou achou que seria uma brincadeira, algo engraçado. Lamentável, pois não há nada de engraçado em disseminar a cultura do estupro. É por essas e outras que tantos profissionais de saúde tem praticado estupros em consultórios e salas de cirurgia.

Logo em seguida ao canto do hino de apologia ao estupro, todos os demais formandos fizeram o juramento de Hipócrates, que é considerado o pai da medicina ocidental. O juramento é longo, mas podemos apresentar uma parte significativa desse juramento:  

 “Prometo solenemente consagrar a minha vida a serviço da Humanidade.

Darei aos meus Mestres o respeito e o reconhecimento que lhes são devidos.

Exercerei a minha arte com consciência e dignidade.”

Os comportamentos aqui relatados estão muito longe daqueles defendidos por Hipócrates: passaram longe do “serviço da humanidade”, “respeito”, “consciência” e “dignidade”. A ética, a moral, a dignidade e o respeito às leis e à dignidade humana devem orientar o comportamento daqueles que se dispõem a salvar vidas.

Hipócrates com certeza está envergonhado.

Cabe a todos nós, e principalmente aos gestores das faculdades de medicina – e de outros cursos – tomarem providências para resgatarem os valores defendidos por Hipócrates e pela nossa legislação, pois universidades não são terra sem lei. 

Sobre o autor

Sávio A. B. Lessa é Doutor em Ciência Política; pós graduado em Ciências Penais, Segurança Pública, Direitos Humanos e Direito Militar; Advogado Criminalista; Professor de Direito Penal e Processual Penal da FCR; Pesquisador do PROCAD/MIN. DEFESA; e Coronel da Reserva da PMRO.

*O conteúdo é de responsabilidade do colunista

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