Chega de trotes universitários que ofendem a dignidade das mulheres

Neste mês de março é impossível não discutirmos a questão da violência contra as mulheres. Desde o início desta coluna, escrevemos muitos artigos que tratam desse tema. Infelizmente a violência contra as mulheres é algo recorrente.

Neste mês de março é impossível não discutirmos a questão da violência contra as mulheres. Desde o início desta coluna, escrevemos muitos artigos que tratam desse tema. Infelizmente a violência contra as mulheres é algo recorrente.

Em recente estudo realizado pelo monitor da violênciai verificou-se que:


  • o Brasil teve 3,9 mil homicídios dolosos (intencionais) de mulheres em 2022 (aumento de 2,6% em relação ao ano anterior)
  • foram 1,4 mil feminicídios, o maior número já registrado desde que a lei entrou em vigor, em 2015
  • 12 estados registraram alta no número de homicídios de mulheres
  • 14 estados tiveram mais vítimas de feminicídio de um ano para o outro
  • Mato Grosso do Sul e Rondônia são os estados com o maior índice de homicídios de mulheres
  • MS e RO também têm as maiores taxas de feminicídios do país
Foto: Divulgação

O mesmo estudo revela que Rondônia tem sido um destaque negativo no que diz respeito à violência contra as mulheres. Rondônia possui a segunda maior taxa de homicídios de mulheres por 100 mil habitantes (7,6), perdendo apenas para o Mato Grosso do Sul, que mata 8,3 mulheres a cada 100 mil habitantes. Em terceiro lugar vem o Estado de Roraima, com 6,8 mulheres mortas a cada 100 mil habitantes.

Rondônia e Amapá ainda despontam como os Estados brasileiros com a maior alta nos casos de feminicídios em 2022: Rondônia (75%) e Amapá (100%).

E quando falamos de feminicídio, que corresponde à morte de mulheres pelo simples fato de serem mulheres, ou seja, por questão de gênero, Rondônia e Mato Grosso do Sul possuem as maiores taxas do Brasil.

Outro estudo, desta vez realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Públicaii , revela que:

  • Nos últimos 12 meses, 28,9% (18,6 milhões) das mulheres relataram ter sido vítima de algum tipo de violência ou agressão, o maior percentual da série histórica;
  • Isso significa que 35 mulheres foram agredidas física ou verbalmente por minuto no país.

Essa violência, lamentavelmente, começa cedo. A pesquisa do FBSP revela que as mulheres mais jovens (16 a 24 anos) foram as maiores vítimas (43,9%), sendo que as ofensas verbais foram o tipo mais frequentemente relatado (32,4%).

Os tipos de ofensas mais citados pelas mulheres são:

  • Ofensas verbais: 23,1% de prevalência (14,9 milhões)
  • Perseguição: 13,5% (8,7 milhões)
  • Ameaças: 12,4% (7,9 milhões)
  • Agressão física (chutes, socos e empurrões, por exemplo): 11,6% (7,4 milhões ou 14 por minuto)
  • Ofensas sexuais: 9% (5,8 milhões)
  • Espancamento ou tentativa de estrangulamento: 5,4% (3,4 milhões)
  • Ameaça com faca ou arma de fogo: 5,1% (3,3 milhões)
  • Lesão provocada por algum objeto que lhe foi atirado: 4,2% (2,7 milhões)
  • Esfaqueamento ou tiro: 1,6% (1 milhão)

Esses são apenas alguns dos inúmeros tipos de ofensas que as mulheres são vítimas. Com o início do semestre letivo das faculdades, deparamo-nos com um outro tipo, muito comum, de violência contra as mulheres: os trotes degradantes.

Foto: Alair Ribeiro/MídiaNews

O trote universitário é uma espécie de ritual de iniciação dos calouros, os recém aprovados no vestibular. Ao ingressarem nas faculdades, esses calouros, chamados de “bichos” pelos veteranos (alunos que já cursam o ensino superior) são submetidos a todo tipo de “brincadeira” humilhante, degradantes, e por vezes violentas.

É comum sujarem os calouros com tinta, farinha, lama, ovos e raspar a cabeça dos rapazes. Os calouros nem sempre tem opção de escolher participar dos trotes. É comum serem coagidos ou intimidados a participarem desses trotes, sob pena de serem perseguidos pelos mais antigos ou de não serem aceitos na “tribo” dos universitários. E como os jovens calouros (bichos) querem ser aceitos nesse novo grupo social, concordam em participar dos trotes.

Ocorre, no entanto, que alguns veteranos induzem, e por vezes forçam os calouros a se embebedarem até ficarem inconscientes. Chegam a obrigar os calouros a pedirem dinheiro no semáforo para comprarem bebidas alcoólica para se embebedarem.

Semana passada pude presenciar um grupo de calouros participando de um trote em um semáforo no cruzamento de duas conhecidas avenidas de Porto Velho, capital de Rondônia. Os veteranos humilhavam os calouros e os obrigavam a pedirem “esmola” nos semáforos, disputando essas esmolas com mendigos. Estes sim precisavam da esmola para comprarem comida e remédios.

Para conseguirem vencer a concorrências com os mendigos, os veteranos colocaram as meninas, devidamente vestidas com roupas provocantes e curtas, para pedirem dinheiro aos motoristas, principalmente aos motoristas homens, obviamente. Essas meninas chegaram ao absurdo de se deitarem no asfalto para realizarem movimentos sensuais – pornográficos para dizer a verdade – pois faziam movimentos que simulavam uma relação sexual.

Algumas meninas pareciam constrangidas em fazerem o que os veteranos mandavam, enquanto outras pareciam não se incomodarem. Lamentavelmente isso deixam claro um outro tipo de ofensa às mulheres: a objetificação. As meninas acabam sendo usadas pelos veteranos como objetos sexuais para atiçarem e satisfazerem a libido dos motoristas homens, a fim de que estes deem dinheiro para as meninas, que serão usados para eventos regados a álcool, onde, lamentavelmente, algumas meninas são embriagadas, e as vezes abusadas.

Foto: Reprodução/Facebook

Em 08 de março de 2022 escrevi um artigo, publicado nesta coluna, sob o título Para o deputado “Mamãe Falei”, e tantos outros homens, mulheres não passam de meros “objetos” sexuais, onde discorremos sobre a objetificação das mulheres. Nele, afirmamos que o Brasil é um país violento que mata e estupra muitas mulheres e meninas e que as mulheres não podem continuar sendo vistas como um pedaço de carne para serem consumidas pelos homens, para satisfazerem os seus desejos mais primitivos e selvagens. Ver as mulheres dessa forma é objetificá-las, ou seja, vê-las apenas como um objeto. Dalila Belmiro em um excelente trabalho publicado com outros autores em 2015, intitulado “Empoderamento ou Objetificação: Um estudo da imagem feminina construída pelas campanhas publicitárias das marcas de cerveja Devassa e Itaipava” ensina que:

A objetificação, termo cunhado no início dos anos 70, consiste em analisar um indivíduo a nível de objeto, sem considerar seu emocional ou psicológico.”iii

Objetos sexuais são vibradores, consolos, bonecas infláveis, ou seja, brinquedos sexuais que podem ser encontrados em sex shops. Mulheres não são objetos, são seres humanos.

A objetificação da mulher traz vários problemas, tais como: a cultura do estupro, o padrão de beleza e a desqualificação da mulher. Infelizmente, algumas mulheres se auto objetificam, ou seja, comportam-se como objetos sexuais. Mas por que isso acontece? Iana Lima explica:

Quando lembramos que parte da cultura patriarcal compreende a satisfação sexual que a mulher precisa dar ao homem, o impacto disso no comportamento de muitas mulheres é de se empenhar em tornar seus corpos sexualmente atraentes para os homens em detrimento de suas próprias expectativas. Enxergar seu próprio corpo e o corpo de outras mulheres como objetos de satisfação do desejo sexual masculino é parte do processo de auto objetificaçãoiv.

Foto: Saulo Tomé/UnB Agência

As jovens calouras não podem ser objetificadas pelos alunos veteranos. Não podem ser objetificadas por ninguém, nem mesmo por elas mesmas. As vezes as meninas se auto objetificam sem terem consciência do mal que estão fazendo a si própria e para outras mulheres, pois ajudam a propagar essa cultura distorcida e machista. Obviamente que muitas mulheres fazem isso inconscientemente, levadas por uma educação machista e por uma propaganda que cria um estereótipo das mulheres, de que precisam ser bonitas, “gostosas”, sensuais e atraentes. Ignoram que elas também têm suas expectativas, desejos, ambições, sonhos e sentimentos.

Precisamos combater todo e qualquer tipo de violência contra as mulheres, iniciando esse combate desde cedo e em todos os segmentos da sociedade, incluindo o meio universitário. Se os veteranos, alunos antigos das faculdades, não respeitam as jovens alunas, é sinal de que no futuro serão profissionais que não respeitarão às mulheres.

Está na hora de trocarmos os trotes degradantes e desumanos pelos trotes solidários, onde os calouros participam de forma voluntária, e os veteranos escolhem instituições sociais para serem ajudadas pelos alunos. Esse tipo de trote propicia a integração entre sociedade e o meio acadêmico, além de incentivar a contribuição para a cidadania.

Referências

i https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2023/03/08/brasil-bate-recorde-de-feminicidios-em-2022-com-uma-mulher-morta-a-cada-6-horas.ghtml

ii https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2023/03/02/35-mulheres-foram-agredidas-fisica-ou-verbalmente-por-minuto-no-brasil-em-2022-diz-pesquisa.ghtml

iii https://portalintercom.org.br/anais/nacional2015/resumos/R10-1863-1.pdf

iv https://www.politize.com.br/o-que-e-objetificacao-da-mulher/ 

Sobre o autor

Sávio A. B. Lessa é Doutor em Ciência Política; pós graduado em Ciências Penais, Segurança Pública, Direitos Humanos e Direito Militar; Advogado Criminalista; Professor de Direito Penal e Processual Penal da FCR; Pesquisador do PROCAD/MIN. DEFESA; e Coronel da Reserva da PMRO.

*O conteúdo é de responsabilidade do colunista

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