Fome aumentou em 76% risco de crianças na Amazônia terem Covid-19

Em pesquisa que acompanha nascidos em 2015 e 2016 no município de Cruzeiro do Sul (AC), mais da metade dos entrevistados relatou que passou fome no mês anterior.

A insegurança alimentar contribui, em muito, para uma criança apresentar sintomas da Covid-19. A conclusão é de um estudo realizado por pesquisadores brasileiros publicado em julho de 2022 na revista PLOS Neglected Tropical Diseases. Os resultados foram obtidos no âmbito do “Estudo MINA – materno-infantil no Acre: coorte de nascimentos da Amazônia ocidental brasileira“, realizado desde 2015 no município de Cruzeiro do Sul, no Acre, com apoio da FAPESP.

“Entre as crianças com evidências sorológicas de infecção anterior por SARS-CoV-2, aquelas cujos domicílios passaram fome no mês anterior às entrevistas apresentaram chance de ter Covid-19 76% maior quando comparadas com crianças que não tinham sido expostas à insegurança alimentar”, conta Marly Augusto Cardoso, professora da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP) e coordenadora do estudo.

Em duas ocasiões, primeiro em janeiro e depois em junho e julho de 2021, foram realizados testes de anticorpos para o SARS-CoV-2 em 660 das 1.246 crianças nascidas em 2015 ou 2016 inicialmente acompanhadas pelo estudo, além de entrevistas com as mães ou cuidadores.

Os pesquisadores perguntaram sobre a presença de sintomas da COVID-19 nas crianças, como tosse, dificuldade para respirar e perda de paladar e olfato. Um questionário definiu ainda ocorrência de insegurança alimentar domiciliar, que indica se a família havia passado fome no mês anterior.

“Normalmente, os adultos priorizam a alimentação das crianças, podendo passar fome para poder alimentar os filhos. Se a criança da casa passou fome é sinal de uma situação muito difícil para a família toda”, 

explica a pesquisadora.

Foto: Bárbara Prado

Mais da metade dos domicílios dos participantes (54%) foi caracterizada em estado de insegurança alimentar. Entre esses, 9,3% reportaram sintomas de COVID-19 em comparação a 4,9% de crianças cujas famílias não relataram insegurança alimentar, o que mostra uma vulnerabilidade 76% maior desse grupo à manifestação clínica da infecção por SARS-CoV-2. A maior ocorrência de infecção mostrou relação ainda com piores condições de moradia, além de menor escolaridade e cor da pele das mães, a maioria não branca.

No total, 297 crianças (45%) tiveram anticorpos para SARS-CoV-2 detectados. Dessas, apenas 11 (3,7%) haviam realizado testes para confirmação da Covid-19 antes do estudo e 48 (16,2%) tiveram sintomas como tosse, dificuldades respiratórias e perda de olfato e paladar. Entre as mais pobres, a presença de sintomas foi maior.

Subnotificação

“Existem estudos mostrando que o status socioeconômico e a nutrição influenciam uma maior ocorrência de doenças infecciosas. Não há dados suficientes ainda para a Covid-19, mas tanto no nosso estudo como em pesquisas realizadas em outros países há evidência de que essa correlação também existe”, 

diz Cardoso.

O grupo da pesquisadora atualmente analisa amostras da microbiota intestinal de participantes do estudo a fim de fazer correlações entre a alimentação e a ocorrência de doenças, incluindo a COVID-19.

Ainda que quase metade das crianças tenha apresentado anticorpos para o SARS-CoV-2, só 5% das mães reportaram um episódio anterior de COVID-19 nos filhos, sugerindo que oito em cada nove infecções ficaram sem diagnóstico e, portanto, não foram notificadas.

Essa subnotificação, alertam os pesquisadores, tem consequências para a saúde pública, como a falsa percepção de que as crianças são menos suscetíveis à doença. Em outros contextos, por exemplo, a menor ocorrência de quadro clínico da COVID-19 em crianças foi uma justificativa para os pais adiarem ou mesmo recusarem a vacinação dos filhos em idade para serem vacinados.

O fato de serem em grande parte assintomáticas, porém, faz com que crianças e adolescentes sejam transmissores para o resto da família, incluindo pessoas mais suscetíveis a quadros graves, como idosos e pessoas com comorbidades.

No estudo publicado agora, a maioria das crianças infectadas teve parentes com quadros de COVID-19, principalmente as mães. Quando não era a progenitora, pai, irmãos, avós ou vizinhos haviam apresentado sintomas da doença. Em quadros de insegurança alimentar ou quando a mãe era não branca (negra, parda ou indígena), houve maior prevalência da manifestação clínica da doença.

Uma limitação do estudo foi o fato de os participantes desse segmento do MINA que estudou a prevalência do SARS-CoV-2 viverem na área urbana ou em áreas rurais acessíveis. Os pesquisadores acreditam que em localidades mais distantes, com menos acesso a serviços de saúde, é possível que a situação seja ainda pior.

“Na área rural distante é difícil continuar o acompanhamento e perdemos o contato com muitos dos participantes. Isso ocorre também com os mais pobres, mais difíceis de serem localizados porque mudam muito de endereço e mesmo de região. Perdemos contato com mais de 300 crianças ao longo de cinco anos de acompanhamento”, narra Cardoso.

Um dado que chamou a atenção ainda foi a menor manifestação de sintomas nas crianças filhas de mães com mais de 12 anos de escolaridade. A manifestação da COVID-19 foi maior à medida que diminuía o número de anos de educação formal das progenitoras.

“É importante ressaltar que as crianças das famílias mais pobres e aquelas com mães menos instruídas foram significativamente mais propensas a serem soropositivas para o SARS-CoV-2. Isso reflete uma condição socioeconômica pior do que daquelas que estudaram mais tempo e também um menor acesso a informações e a alternativas de sobrevivência, que se refletem em melhor assistência à saúde dos filhos”, afirma a pesquisadora.

“Observamos isso também nos estudos que realizamos sobre malária, desenvolvimento infantil e estado nutricional. Investir na educação das mães também tem impacto na qualidade de vida das crianças”, encerra.

*Por André Julião, da Agência FAPESP 


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