Covid-19: Infectados podem chegar a dois milhões no Pará, aponta pesquisadora

“Podemos dizer que, no início da pandemia, o que aconteceu no Pará foi surreal. A velocidade da taxa de transmissibilidade foi terrível. Isso fez com que o nosso sistema, que não estava preparado para essa velocidade de transmissão e número de casos, tivesse um colapso.”

Para a médica Marília Brasil Xavier, a flexibilização e o retorno às atividades durante a pandemia de covid-19 exigem que se tenha uma baixa taxa de reprodução viral (menor do que 1) e uma retaguarda de saúde com capacidade de assistir as pessoas portadoras do novo coronavírus. Especialista em Dermatologia, pela Sociedade Brasileira de Dermatologia, e em Infectologia, pela Sociedade Brasileira de Infectologia, Marília Brasil Xavier possui especialização em Saúde Coletiva, é mestre em Biologia de Agentes Infecciosos e Parasitários e doutora em Neurociências e Biologia Celular, ambos pela Universidade Federal do Pará (UFPA), da qual é professora adjunta III do Núcleo de Medicina Tropical, além de professora titular em Dermatologia, da Universidade do Estado do Pará (UEPA). Nesta entrevista, ela analisa a pandemia no Pará, os números, a questão das vacinas, o retorno às atividades e as perspectivas pós-pandemia.
Marília Brasil Xavier analisa números e perspectivas pós-pandemia. (Foto:Alexandre Moraes/UFPA)

O Pará no cenário da pandemia mundial

Sabemos que, no mundo, considerando apenas os casos confirmados, a pandemia da covid-19 atingiu cerca de 24 milhões de pessoas. Desse total, a metade, ou seja, 12 milhões, aconteceu nas Américas. Também sabemos que o Brasil já chegou a mais de 100 mil mortes. No Pará, foram confirmados 193 mil casos e 16 mil mortes. Então, das 100 mil mortes no Brasil, 16 mil foram a “contribuição” do Pará, o que representa um papel triste no cenário mundial. A pandemia chegou ao nosso estado rapidamente, e a confirmação do primeiro caso foi negada pela Secretaria de Saúde. Na verdade, o primeiro caso já havia acontecido no final de fevereiro, e nós estávamos despreparados para fazer vigilância. Não houve vigilância nos aeroportos e também não houve vigilância de entrada em nosso país. O Pará está localizado em uma área onde temos voos diretos de outros países. No carnaval e no retorno das férias, quando muitos tinham ido à Europa, houve a disseminação da doença de uma forma muito rápida.

Subnotificação e realidade

Podemos dizer que, no início da pandemia, o que aconteceu no Pará foi surreal. A velocidade da taxa de transmissibilidade foi terrível. Isso fez com que o nosso sistema, que não estava preparado para essa velocidade de transmissão e número de casos, tivesse um colapso. Além disso, tivemos a própria categoria da saúde adoecendo. Ficamos com serviços descobertos e superlotados. Tivemos pessoas que morreram nas ruas. Sabemos que o número de casos notificados em nosso estado está muito aquém da realidade. Se temos um registro de 193 mil, a estimativa é que tenhamos entre sete e dez vezes mais que isso. Então, se considerarmos dez vezes, teríamos quase dois milhões de pessoas em um cenário com um pouco mais de 8 milhões de habitantes.

No Brasil, a velocidade de transmissão foi muito alta em certos estados. Em outros, retardou, mas é certo que o número de casos em nosso país é muito alto. Quando alguém diz: “mas agora o país apresenta uma situação de maior proteção porque tivemos um número de casos muito alto” está querendo dizer que adquirimos certa imunidade por causa da coletividade. Mas que pensamento é esse que considera positivo você ter uma imunidade coletiva às custas de 100 mil mortes? Então, no Pará, como tivemos um número grande, podemos dizer que temos uma certa proteção? Sim, hoje, a taxa de produção viral está baixa, graças a Deus. Isso faz com que tenhamos um número de transmissão e um número de casos menores.

Vacinas: expectativas

É claro que todos ansiamos pela imensa velocidade com que os grupos estão tentando produzir uma vacina e assistimos a isso. Sabemos que existe o interesse de diversos países e laboratórios, mas, diante da gravidade da situação, a gente trata de utilizar todos os recursos para que possamos controlar uma pandemia desse nível. As principais vacinas que nós temos são as da Rússia e de Oxford. Todos precisam completar as fases que são naturais na produção de vacinas. Mas percebemos, com surpresa, que a Rússia fez logo um registro de vacina, tratando de conseguir uma vitória nessa competição, porém sabemos que a Rússia não cumpriu todas as fases da etapa três.

Em relação à vacina produzida por Oxford, que conta com a participação ativa da Fiocruz, ela se encontra na fase três. Então, o Ministério da Saúde do Brasil se comprometeu no processo de compra da vacina de Oxford, e espera-se que ela esteja, em janeiro, disponível para os usuários. Claro, numa doença sem tratamento medicamentoso específico, altamente contagiante, com uma patogenicidade muito grande, capaz de atingir muitos órgãos e de deixar sequelas, a vacina é realmente a solução para que possamos voltar a um estado normal de convivência. Mas, infelizmente, não teremos vacina este ano. Provavelmente, só no fim do primeiro semestre de 2021.

Flexibilização e abertura

A pandemia se apresenta em fases diferentes em vários locais, conforme a sua disseminação. A questão do território é importante para efeitos de flexibilização. Mas o que está norteando o retorno à normalidade? Aí se colocam alguns elementos. O primeiro foi a taxa de reprodução viral, o indicador criado para avaliar a capacidade de transmissão do indivíduo, se ele transmite para uma, duas ou três pessoas. Então, o que se quer é que a taxa de reprodução viral (RT) fique abaixo de 1, ou seja, que o indivíduo não seja capaz de passar nem para uma pessoa. Isso varia conforme o local. Veja o exemplo de Belém, onde, hoje, essa taxa está em torno de 0,5. No interior do estado, ainda há locais com taxas de transmissão acima de 1. De modo geral, no Pará, a RT está em 0,9, enquanto Belém registrou 0,8. Isso significa que não dá para relaxar.

O “novo normal” exige que se cumpram as recomendações. É necessário que se tenha uma taxa de reprodução viral menor do que 1 e uma retaguarda com capacidade de assistir as pessoas. Embora o governo do estado e a Prefeitura de Belém tenham desativado alguns serviços, caso venham a acontecer novos casos, é preciso ter capacidade de tratar, diagnosticar e dar suporte para que o paciente vença a infecção. Então, para flexibilizar, há que se ter disponibilidade de testes, não somente o teste rápido, que avalia a prevalência, mas também o teste PCR, que realmente verifica a circulação do vírus.

Para pensar em flexibilização, é fundamental ter condições de fazer o diagnóstico rápido e amparar o paciente, além de condições de controlar os surtos, porque eles surgirão. E a própria sociedade tem que discutir. É indispensável que a comunidade tenha consciência do que significa a pandemia. Um estabelecimento comercial, por exemplo, precisa utilizar o álcool em gel e exigir o uso de máscara dentro do espaço. Isso é responsabilidade social.

Perspectivas pós-pandemia

Bem, isso tem vários ângulos para se olhar. Era esperado que, do ponto de vista ético, da solidariedade, do respeito ao planeta e ao meio ambiente, a humanidade sairia melhor depois da pandemia. Até porque o número de óbitos e perdas foi enorme no mundo inteiro. Mas observamos que tivemos um grande número de negacionistas. E esse número levou a uma atitude de enfrentamento da pandemia pouco ética. Então, o que esperávamos de respeito ao planeta, em mudança de atitude, lamentavelmente não se efetivará.

No entanto, olhando por outro ângulo, percebemos que houve uma série de oportunidades. No comércio, ocorreu uma mudança de comportamento. As pessoas passaram a fazer compras on-line e a utilizar mais o serviço delivery. Parece que algumas atitudes e hábitos vieram para ficar. Já estão estabelecidos.

Também se percebeu o valor das ferramentas tecnológicas, como a difusão de cursos on-line e a comunicação por lives. O home office, além de gerar economia, com as pessoas trabalhando em casa, também melhora a qualidade de vida delas. É claro que a segurança pós-pandemia só virá com a vacina. Ela nos possibilitará ter uma vida próxima à que vivíamos antes. Mas algumas condutas e atitudes irão se perpetuar. Isso inclui o sistema de compras e as relações de trabalho, que ficaram muito interessantes. Podemos constatar que, dentro das próprias áreas da saúde e da educação, tivemos avanços. São ganhos que irão continuar mesmo após a chegada da vacina.

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