Teatro Carlos Gomes: primeiro teatro de Roraima amarga 15 anos de abandono

Construído no final da década de 1940, o teatro está fechado desde 2008, quando completou 12 anos, sem receber manutenção

Na programação do teatro, apenas a ferrugem e a sujeira na placa onde os espetáculos eram anunciados. O palco que recebia artistas locais e de todo o Brasil deu lugar ao lixo, sujeira e restos de materiais para o uso de drogas. Esta é a situação em que o Teatro Carlos Gomes, no Centro de Boa Vista, se encontra há quase 15 anos. Com a estrutura caindo aos pedaços, o lugar que é o primeiro teatro do estado agora é o retrato do abandono na região central da capital roraimense.

Construído no final da década de 1940, o teatro está fechado desde 2008, quando completou 12 anos, sem receber manutenção. A reportagem esteve no local onde funcionava o teatro. O forte odor assustava em um primeiro momento. Os portões – enferrujados – estavam abertos e um cadeado que trancava a entrada estava quebrado. Lodo, poças de lama e muito mato estão por toda a parte.

Teatro Carlos Gomes foi construído em 1940 – Foto: Reprodução/Polo de Música de Ariquemes

As poltronas que confortavam os espectadores que acompanhavam os espetáculos, não existem mais. O palco agora é abrigo de moradores de rua e usuários de drogas. Pedaços de lata — usadas no consumo de crack — podem ser vistos em todo o local. Nada lembra os momentos de glória do antigo teatro.

O Rede Amazônica ouviu especialistas e artistas que lamentam o abandono vivido pelo teatro. Para o professor, historiador e mestre em Sociedades e Fronteiras pela Universidade Federal de Roraima (UFRR), José Victor Mattioni, a situação do Teatro Carlos Gomes ilustra o “descaso com a arte” no estado.

“De maneira simbólica, o abandono do teatro está inserido em um contexto municipal e estadual de destruição de patrimônios que ajudaram a fomentar cenários culturais em Roraima. Ficamos órfãos de um teatro público”

disse o especialista.

O doutor em história social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e professor na Universidade Estadual de Roraima (UERR), André Augusto da Fonseca, destaca o forte papel do teatro na história não só da arte em Roraima como de todo o estado.

“As entidades cívicas, sindicais, estudantis, partidos políticos realizavam muitas solenidades, espetáculos e conferências no teatro Carlos Gomes. O teatro chegou a ser fechado e, com a reivindicação de artistas, foi reinaugurado 1988. Agora, volta ao abandono”

diz o historiador.

Teatro está abandonado. Foto:Samantha Rufino/Rede Amazônica

Ao ser questionado sobre o abandono do teatro, o governo de Roraima, responsável pelo teatro, afirmou que existe um planejamento para restaurá-lo. De acordo com a Secretaria de Infraestrutura (Seinf), o processo licitatório para a reforma do Teatro Carlos Gomes está em andamento com orçamento de mais de R$ 2,2 milhões.

Destacou ainda que a reforma do teatro contempla a cobertura, elétrica, hidráulica, sanitária, adequação de acessibilidade, acústica e obras de urbanismo. Disse que após a conclusão da licitação, a Secretaria informará os prazos da reforma do prédio.

De acordo com o superintendente do Instituto do Património Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em Roraima, Francisco Alves, o instituto está ciente do abandono do teatro e da necessidade da reconstrução do prédio histórico.

“O prédio não consta no Iphan em processo de tombamento. Esse prédio é de responsabilidade do Governo de Roraima. No entanto, mesmo não sendo um bem patrimonial de responsabilidade do Iphan, a superintendência de Roraima tem dialogado com a Secretaria de Cultura sobre a importância da preservação desse prédio histórico”.

“É válido ressaltar que o início de um processo de análise que objetiva o tombamento por parte do Iphan se dá através da ação da sociedade civil, ou seja, o cidadão roraimense, grupos civis, podem entrar com o pedido de abertura de processo visando o tombamento do prédio”. 

Francisco Alves

Área interna do Teatro. Foto: Caíque Rodrigues/Rede Amazônica

Ele destacou ainda que o instituto está a disposição para “contribuir no diálogo que resulte na ação efetiva para a reconstrução do teatro, que é pauta constante dos movimentos culturais”, como por exemplo, o Fórum de Artes Cênicas.

Já o Ministério Público de Roraima (MPRR) informou que a Promotoria de Justiça de Defesa do Meio Ambiente ajuizou Ação Civil Pública, em 2013, contra o governo de Roraima para que os patrimônios e bens culturais materiais e imateriais tombados ou devidamente formalizados fossem adequadamente identificados e catalogados.

A ação contempla a Igreja São Sebastião que, conforme estabelece a Constitucional Estadual, é tombada como parte da memória histórica, turística, social, artística, ambiental e cultural da sociedade roraimense, devendo, portanto, ser restaurada e preservada inclusive a área do entorno onde se encontra o Teatro Carlos Gomes, o qual não foi identificado como tombado pelo poder público.

O pedido do MPRR não foi acolhido pela Justiça Estadual e, conforme decisão judicial de 2018, o Estado ficou incumbido de apresentar em juízo apenas estudo sobre a situação dos bens e catalogar os patrimônios, porém o MPRR recorreu e o processo continua em trâmite.

Foto: Caíque Rodrigues/Rede Amazônica

‘Teatro dos Artistas’ 

Ao longo desses 15 anos, artistas de toda as gerações e idades reivindicaram a restauração e a reinauguração do Teatro Carlos Gomes. Em 2013 as companhias “Malandro é o Gato” e “Cia. do Pé Torto” cobraram a recuperação do espaço em uma intervenção em frente ao local.

Em 2019, o palhaço Leo Malabarista chamou a atenção ao subir na estrutura do para denunciar a falta de investimentos em artistas de Boa Vista. Usando um apito e uma placa com as frases “abaixa palhaçada” e “onde está a verba?”, Leo apontou o descaso com o prédio do teatro.

O Teatro Carlos Gomes, para Chirley dos Reis, de 59 anos é mais do que um local no Centro de Boa Vista, é parte da sua história como artista e como pessoa. Chirley Cantoria, como é conhecida, integrava o cenário cultural de Roraima que se solidificou entre os anos 1980 e 1990. O espaço, que os organizadores culturais carinhosamente apelidaram de “Teatro dos Artistas”, desempenhava um papel igualitário na expressão artística em Boa Vista, segundo ela.

“Fiz vários espetáculos musicais lá. Eu até fui professora de artes e montei uma peça com meus alunos e foi mostrado no Teatro Carlos Gomes. Eu me descobri como cantora aqui e justamente quando só tinha o Teatro que a gente chamava de ‘Teatro dos artistas'”

relata.

A artista é paraense e morou em Boa Vista durante parte da infância. Segundo ela, naquela época não existia um espaço específico para apresentações artísticas, no entanto, o Teatro Carlos Gomes sempre estava presente, quando uma rádio funcionava no mesmo prédio.

“O Teatro Carlos Gomes vem de uma história antiga. Quando eu tinha 9 anos, eu ouvia a rádio já lá no Teatro Carlos Gomes. Na época tinha lá uma extensão da Rádio Roraima. Tinha o show do Jaber Xaud e eu lembro com 9 anos que eu ouvia [a música] pelo rádio e eu já queria cantar. Era um programa de calouros, estilo Raul Gil”

relembra.

Chirley Cantoria no espetáculo Rosas na década de 1990 (a direita) e Jaber Xaud em seu programa de rádio (a esquerda), no Teatro Carlos Gomes. Foto: Acervo

O programa de Jaber Xaud – locutor que futuramente daria nome ao Teatro do Serviço Social do Comércio (Sesc) em Boa Vista – foi o pontapé do que viria a se tornar a persona artística de Chirley Cantoria.

“Eu cantava muito quando criança. Eu queria cantar, mas minha mãe nunca me levava para o programa de rádio da época, que era justamente no local do Teatro Carlos Gomes, aquelas mesmas cadeiras de madeira. Aquilo me deixou muito fascinada. Fui embora daqui e quando eu cheguei lá em Belém, eu já fui com o sonho de querer ser artista. Eu queria ser artista”.

Chirley

Durante sua juventude, Chirley retornou a Belém, onde dedicou-se ao estudo das artes cênicas e plásticas. Após sua formação, em 1981, ela retornou a Roraima e ficou maravilhada ao constatar que a estação de rádio que a inspirou a seguir a carreira musical havia se metamorfoseado em um teatro: o renomado Teatro Carlos Gomes.

Para Chirley, o Teatro Carlos Gomes era mais do que um simples espaço teatral, era um verdadeiro lar. Embora ela se apresentasse em vários bares da cena artística de Roraima, o “Teatro dos Artistas” era o palco principal onde ela brilhava em seus espetáculos. 

“Quando eu cheguei aqui, os nossos palcos eram o Teatro Carlos Gomes e dois barzinhos que proporcionaram para a gente cantar. Todos os artistas se reuniam, se juntavam para mostrar seus trabalhos. Quando não era no Teatro, era nesses barzinhos que a gente se juntava. Todo mundo ia lá, só que não pagavam ninguém, a gente ia porque queria mostrar o nosso trabalho”. 

Chirley

 A característica que mais encantava Chirley nos espetáculos realizados no Teatro Carlos Gomes era a sua abertura para novos artistas. Segundo ela, qualquer pessoa que desejasse se expressar e tivesse algo a dizer encontrava espaço acolhedor no Teatro.

Parte do busto do maestro Carlos Gomes, que dá nome ao teatro, jogado no chão após o primeiro abandono, na década de 1990. Foto: Acervo/Maurício Zouein

“Era o nosso xodó e era bom porque não tinha burocracia como os outros teatros. Nunca, nenhum artista pagou iluminação ou som. Era simples, mas tinha espaço. Qualquer artista que você perguntar vai dizer que sente saudade daquele lugar, que aquilo ali não deveria nunca, nunca, ficar do atual jeito. Que fosse um Teatro simples, mas que era uma coisa nossa, gostosa e fácil das pessoas chegarem lá porque o terminal de ônibus fica perto de lá”.

por Autor

Entre os espetáculos de Chirley do qual o “Teatro dos Artistas” foi palco, os que ela mais lembra com carinho estão o musical “Rosas”, de 1999, e a abertura para o violonista Sebastião Tapajós, descrito por ela como “o maior violonista da Amazônia”.

“Eu fiz a abertura de Sebastião Tapajós, um dos maiores artistas de violão, compositores da Amazônia, conhecido internacionalmente. Como ele é paraense e tinha contato com o pessoal do Roraimeira como o Zeca Preto. Então, por causa dessas amizades do Zeca Pedro com Nilson Chaves e Sebastião de Tapajós, eu sempre fazia a abertura e como ele era meu produtor musical, porque ele ainda não era cantor, não tinha se colocado como cantor apenas como poeta”.

Chirley sente uma profunda tristeza ao testemunhar o estado atual do amado Teatro Carlos Gomes. Ela descreve a situação de abandono do “Teatro dos Artistas” como um verdadeiro desrespeito à cultura roraimense.

“Sinto com muito pesar, que o governo tenha abandonado um patrimônio simples, bonito, confortável e onde muitos artistas iniciaram. Artistas que hoje são conhecidos, os roraimeiras passaram lá não sei quantas vezes… Por que o governo deixou isso acontecer com uma coisa que fazia parte da história da música, do Teatro e da arte de Boa Vista?”.

“Para mim, é um grande descaso com a arte e a cultura de Roraima. Não somente com o Teatro Carlos Gomes, mas com outros prédios tombados e depois destruídos”, disse, com revolta, a artista.

Foto: Ronny Alcantara/Rede Amazônica

Primeiro teatro de Roraima 

O Teatro Carlos Gomes foi o primeiro espaço destinado para espetáculos artísticos em Roraima. De acordo com o historiador André Augusto da Fonseca, o prédio foi construído pelo governador do território, Clóvis Nova da Costa, no final da década de 1940.

“Sabemos que o Teatro era muito ativo nas décadas de 1950 até o início da década de 1980. É importante lembrar que ele se situa em frente à primeira praça de esportes de Roraima, a praça Capitão Clóvis. Também se situa perto de várias escolas tradicionais do centro da cidade, como a Lobo D´Almada, a Princesa Isabel, a São José e a Euclides da Cunha, que realizavam muitas atividades ali”, disse.

O teatro exercia uma função importante para o setor artísticos em Roraima. José explica que o espaço era usado para eventos em geral, inclusive, políticos.

“O teatro fomentava as artes visuais na capital, estimulava a realização de eventos de artistas locais e atrações de outros estados. Era um local de encontros, o que gerou memórias afetivas e simbólicas a partir do teatro. Muitos boavistenses assistiram a uma apresentação pela primeira vez na vida graças ao Carlos Gomes”, explica.

O teatro chegou a ser fechado. Em 1988 foi reinaugurado cerca de 5 anos após seu primeiro fechamento. O professor explica que a reinauguração só aconteceu após reivindicações da classe artística.

“Em 1985 a Federação de Teatro Amador já reivindicava a reabertura do local. No ano seguinte, o cantor Neuber Uchoa anunciava uma temporada de shows para comemorar o anuncio da reabertura que ocorreu em 1988 e novamente espaço de cursos de teatro e balé, coral, festivais e espetáculos com o Roraimeira, envolvendo dança, poesia e música regional”, explica Mattioni.

Foto: Caíque Rodrigues/Rede Amazônica

De acordo com ele, a reinauguração aconteceu com defeitos e reclamações dos artistas.

“Já em 1991, Eliakin Rufino denunciava no mesmo jornal que os equipamentos do teatro foram danificados logo depois da inauguração e os artistas é que tinham que pagar pelo aluguel do som e iluminação para realizar shows no local”.
Para André Fonseca, de maneira simbólica, o abandono do teatro está inserido em um contexto municipal e estadual de destruição de patrimônios que ajudaram a fomentar cenários culturais em Roraima. Segundo ele, “ficamos órfãos de um teatro público”.

“As crises do teatro ocorrem desde os tempos do Território Federal. Quando as atividades foram encerradas, percebemos o teatro Carlos Gomes sendo abandonado aos poucos, o que gera tristeza ao público que teve a felicidade de assistir a um evento no saudoso teatrinho”, concluiu.  

*escrito por Caíque Rodrigues

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