Aplicação da pimenta na linha d’água dos olhos é realizada por um ancião da comunidade Raposa I, no município de Normandia, ao Nordeste de Roraima.
Com gosto forte e marcante, a pimenta seja fresca, em conserva ou molho, é utilizada para enfeitar pratos, dar sabores aos mais variados tipos de receitas. Essa especiaria é consumida regularmente pelas pessoas ao redor do mundo. A pimenta malagueta, por exemplo, ocupa um tradicional e respeitado lugar na cultura dos indígenas do povo Macuxi, em Roraima.
Na comunidade Raposa I, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, ao Nordeste do Estado, ela tem uso medicinal: curar dores de cabeça e extrair o cansaço das pessoas. A especiaria é aplicada em uma das áreas mais sensíveis do corpo humano, os olhos.
Cravada na tríplice fronteira entre Brasil, Venezuela e Guiana, a Terra Indígena Raposa Serra do Sol tem uma população de cerca de 20 mil indígenas. Eles estão distribuídos em 222 comunidades dos povos Macuxi, Wapichana, Taurepang, Patamona e Ingaricó. As comunidades tem como sustento a agricultura, pecuária e também artesanatos.
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O ‘remédio’ é usado durante o ritual da Pimenta no Olho ou Yenu’ Ye’Kaito’, em Macuxi, e o costume precisa ser realizado por um líder da comunidade, segundo Enoque Raposo, representante da Raposa. “O ritual da Pimenta no Olho é um ritual milenar, é uma medicina utilizada por muito tempo pelos povos indígenas dessa região da Amazônia Caribenha”, explicou ele.
Acredita-se que a tradição é uma maneira de aumentar o nível de energia do corpo e reduzir as dores de cabeça sem ter que tomar os analgésicos tradicionais. A prática surgiu quando os ancestrais trabalhavam nas roças e não tinham a oportunidade de descansar após o trabalho.
“Antes nós não tínhamos esses remédios que tem hoje nos postos de saúde como, paracetamol e entre outros remédios para dores de cabeça. Antigamente, os povos indígenas não utilizavam esses tipos de remédios e recorreram para o mais natural”,
afirmou Enoque.
Qualquer pessoa pode passar pelo tratamento, mas para dar certo o “paciente” precisa estar confiante, ter fé no processo e acreditar nos benefícios que o ritual indígena pode trazer para a saúde dele.
Para que o ritual seja realizado, a especiaria precisa estar verde. Tirada da pimenteira, ela é consagrada e precisa passar por uma reza, que auxilia na proteção contra as doenças. Em seguida, ela é “machucada”, amassada. O resultado é um molho picante, que será aplicado na linha d’água dos olhos, com a ajuda de um pequeno fio de corda.
“Então, eles usavam essa medicina indígena que é benzida, não é de qualquer forma que faz e a bênção é para dar essa proteção para não pegar doenças”, ressaltou Enoque Raposo.
A liturgia também segue uma outra regra principal: precisa ser realizada por uma pessoa que conheça muito bem o método, como um respeitável ancião da comunidade.
Explicando sobre o ritual, a mestre em antropologia social da Universidade Federal de Roraima (UFRR), Melina Carlota Pereira, afirma: ele é milenar. Na concepção indígena, o fruto picante é como uma vitamina, que previne doenças e espanta até espíritos sobrenaturais.
“A pimenta no olho significa muitas coisas. É a prevenção de uma dor de cabeça, por exemplo, e é de uso milenar. De um tempo em que não existia remédio. Então, o conhecimento nativo do indígena era muito baseado nisso, nessa concepção de que a pimenta malagueta seria medicinal e que com tempo, cientificamente, ela é comprovada como medicinal”, explica a especialista, que também é do povo Macuxi.
“É nesse sentido que os indígenas gostam de colocar a pimenta nos olhos. No sentido de proteção, de se tornar mais forte, já que a compreensão sobre a doença e o bem estar, é o corpo em si estar saudável. É como uma vitamina, como se aumentasse a imunidade contra espíritos sobrenaturais”, completou a antropóloga.
Inicialmente, o ritual ancestral só era realizado entre os indígenas. No entanto, com o passar dos anos, a tradição começou a ser compartilhada com as pessoas que visitam a região, que realiza o etnoturismo e recebe visitantes de todo o mundo. A pesquisadora, professora e doutora em Artes Visuais da UFRR, Dayana Soares, já passou pelo ritual pelo menos cinco vezes.
“A gente sente uma espécie de cura, paz e alívio. Quem tem problemas de rinite, como eu tenho, sente um alívio em relação a isso também e a gente fica mais leve, mais esperto. A história de que o ritual retira a preguiça é verdade, ficamos mais atentos”,
esclareceu Dayana.
A primeira vez que Dayana passou pelo ritual foi em 2019, durante uma edição do Festival das Panelas de Barro que acontece na região. Na época, ela sentiu medo do procedimento, mas ao ver algumas crianças passando por ele, aceitou participar da ação e viver a experiência.
“Primeiro, o olho arde bastante e a gente não consegue abrir. Se coçar, ele vai arder mais ainda. Então, tem que ficar quieto pois a dor vai passando, a ardência só demora de cinco a dez minutos”, esclareceu.
Segundo ela, a pimenta “toma conta do corpo” e aos poucos entra pelos canais nasais. Neste momento, não existe dor, mas sim uma ardência e a pessoa passa por uma introspecção, onde faz uma análise sobre si mesmo, espera a pimenta agir e lida com a sensação causada pelo fruto.
“Depois de um tempo, vamos abrindo os olhos bem devagar e quando fazemos isso, começamos a lacrimejar bastante. É como uma espécie de limpeza e depois disso, a gente sente um bem estar”, afirma Dayana.
*Por Yara Ramalho, g1 Roraima