Estado lidera número de focos de calor em 2024, segundo dados do Inpe. Nas cidades de Cantá e Amajari, que estão em emergência pela seca, cenário é de fogo e fumaça.
Casas destruídas, plantações inteiras devastadas e animais carbonizados. Os focos de incêndio em Roraima têm afetado o estado desde o fim de janeiro e se juntam aos efeitos da estiagem. Em Boa Vista, o Rio Branco, que abastece a capital, está abaixo da média. Nas áreas rurais e nas comunidades indígenas, os prejuízos se acumulam.
Roraima lidera o número de focos de calor do país em 2024, segundo dados do Instituto de Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) desta quarta-feira (28). No total, foram registrados 2.605 focos entre janeiro e fevereiro.
O período de seca vivido no estado é agravado pelo El Niño, fenômeno meteorológico que eleva as temperaturas. Além disso, especialistas relacionam como agravante as mudanças climáticas e a liberação de áreas de queimadas pelo governo (veja mais abaixo).
A situação piora com a seca do Rio Branco, principal rio de Roraima. No dia 28 de fevereiro, o rio marcou – 0,15 centímetros, o que é considerado abaixo da média. Em 2016, quando o estado enfrentou uma das piores secas da história, o volume de água ficou em – 59 centímetros.
Os prejuízos causados pela estiagem e pelas queimadas ainda não foram contabilizados por completo em todo o estado, mas Defesa Civil estadual informou que há relatos de açudes e igarapés que secaram em propriedades rurais, plantações queimadas e animais mortos pelo fogo.
O Grupo Rede Amazônica esteve em dois dos nove municípios que estão em situação de emergência por conta dos efeitos da estiagem. No Cantá, na região Norte do estado, a comunidade indígena Malacacheta enfrenta os impactos das queimadas, que destruíram roças e até uma casa. Em Amajari, também na mesma região, no principal ponto turístico do estado, a Serra do Tepequém, as chamas e a fumaça tomaram conta do local.
Leia abaixo os relatos dos moradores:
“Fogo do lado de lá, fogo do lado de cá”
Na última quarta-feira (22), um dia depois de Roraima bater o recorde de focos de calor em 2024, os roçados e a casa do agricultor José Pereira, de 52 anos, viraram cinzas na comunidade indígena da Malacacheta, do povo Wapichana, localizada no município de Cantá, a 34 quilômetros de Boa Vista.
Com a ajuda de brigadistas, ele conseguiu salvar parte das ferramentas que usava na plantação e alguns documentos. Em 2016, época em que o estado foi atingido por uma seca histórica, o agricultor também perdeu parte da casa em um incêndio.
Ele relembrou emocionado do momento e explicou que o fogo se espalhou rapidamente. “É um sentimento muito ruim. Se eu pudesse sair daqui… Eu não tive apoio de ninguém [para conquistar] e eu perdi tudo. É triste, triste, triste demais o que eu passei e ainda estou passando”.
“Quando o fogo veio, veio mesmo para destruir tudo. Nós e os vizinhos ficamos aqui em um corre corre, de cima para baixo, ajudando um ao outro, mas não teve como não. A gente ficou ilhado, entendeu? Fogo do lado de lá, fogo do lado de cá”.
Além da casa de José Pereira queimada no Cantá, no município do Amajari, ao menos cinco casas também queimaram.
“A seca não avisa quando vai chegar”
Na comunidade Malacacheta, a estiagem e os incêndios também destruíram parte das produções de outras famílias. A comunidade indígena tem 365 famílias, cerca de 1,4 mil pessoas.
O indígena Erlanjo Rodrigues Messias, de 49 anos, cultivava mandioca. mas perdeu metade da produção em um incêndio que ocorreu na última semana. Em meio ao aumento dos focos, Erlanjo ainda assim atuou como voluntário no combate às chamas na região.
“A comunidade passou por uma dificuldade muito grande nas últimas semanas, nós reunimos força de onde a gente não tinha e apagamos focos de incêndio mesmo durante a noite, tentando salvar o pouco de reserva que temos”, disse.
Porém, o fogo não é o único problema. Erlanjo explicou que está enfrentando dificuldades para manter parte da plantação que restou devido à escassez de água na região. Um dos igarapés onde ele busca água para irrigar o plantio está quase seco, e, apesar de ter um poço artesiano, ele teme que a água não seja suficiente para os próximos dias.
“Nós já tivemos perdas com feijão que morreu devido à falta de água, tivemos perdas com as batatas que também morreram por conta da falta de água. A gente vai ter uma dificuldade também para fazer novas mudas. A seca não avisa quando vai chegar e quando vai acabar, mas ela está muito prolongada e pelo visto vai continuar se prolongando”.
“A gente vai agindo assim para ver se a gente consegue amenizar essa dificuldade que é a seca para que mantenhamos os nossos animais, a nossa plantação pelo menos viva”, explicou.
“Parentes estão se afundando nos poços para ver se encontram água”
O cenário preocupa o vice-tuxaua da comunidade Malacacheta, Janderley Souza Pereira. Ele afirmou que é a primeira vez que vê a situação crítica como agora.
Além das queimadas nas plantações, ele se preocupa com o pasto das criações comunitárias de gado e de carneiro. A alimentação para os animais está cada vez mais escassa.
“É preocupante para os nossos animais que vivem no campo, não tem aquela questão de pasto suficiente e aí com fogo vai queimando tudo. Essa situação realmente vai atingir a autossustentabilidade da comunidade na questão das roças, dos barracões”, alertou.
Por conta disso, a liderança se reuniu com tuxauas de outras comunidades afetadas e encaminhou a demanda dos indígenas para prefeitura do Cantá. Entre as ajudas solicitadas estão a criação de mais poços artesianos.
“Hoje, andando na comunidade, a gente vê os parentes estão se afundando nos poços para ver se encontram água de qualidade, potável”, disse.
“É uma coisa incontrolável esse fogo”
Fumaça, cinzas, florestas e pastos queimados também são a realidade no município de Amajari, no Norte de Roraima. É lá que fica localizada a Serra do Tepequém, o principal ponto turístico do estado, e conhecido por suas cachoeiras.
Nas últimas semanas, a região tem sido consumida por queimadas e incêndios, o que tem causado problemas aos moradores. Um deles é produtor rural Francisco da Cruz. Na propriedade dele, um bezerro recém-nascido morreu e outro ficou ferido por conta do fogo.
“A gente não dorme nem de noite e nem de dia tentando combater esse fogo. È uma coisa incontrolável, é desproporcional. O que tem na frente o fogo vai levando, é casa, são os animais, vai prejudicando tudo. A gente está nessa situação”,
contou.
Ele afirmou que as chamas se aproximaram da casa dele e consumiram a cerca da propriedade que continha os animais, com isso 200 cabeças de gado estão soltas pela estrada.
Agora, a preocupação é como alimentar o gado, isso porque o fogo destruiu todo o pasto. O produtor disse ainda que não consegue transportar os animais para outro local, pois a outra propriedade dele também foi destruída pelas chamas.
“A gente não tem como alimentar esses animais, a gente espera que o poder público, não sei, possa ajudar a gente de uma forma ou de outra para gente comprar um alimento para não deixar esses animais morrerem, mas está difícil porque são muitos”, lamentou.
“Parece que vai se acabar tudo”
Há mais de 30 anos morando no Projeto de Assentamento (PA) Amajari, o produtor rural Francisco Marcos de Oliveira, de 77 anos, relembra que não é a primeira vez que o município é atingido por grandes incêndios.
O produtor também perdeu pasto e cria mais de 100 cabeças de gado, porcos e galinhas. Além da falta de alimentação para os animais, o morador relata dificuldades no dia a dia devido à fumaça intensa.
“É muito fogo, muita fumaça, parece que vai se acabar tudo. E de noite para dormir? Com olhos cheios de fumaça?”,
disse.
A Defesa Civil e os brigadistas voluntários têm feito ações para controlar as chamas que atingem o município. Porém, com os ventos e o tempo seco, as chamas se espalham rapidamente pela região.
A Defesa Civil Municipal também enfrenta outro desafio: poucas equipes para atender a região. No PA Amajari, são só quatro brigadistas e voluntários para tentar impedir o avanço das chamas.
“Mesmo tendo a brigada do Prevfogo, a questão é: fogo para todo lado”, explicou Chaguinhas Soares, coordenadora local da Defesa Civil no Amajari.
O que dizem os especialistas
O porta-voz do Greenpeace, Rômulo Batista, explicou que o cenário de incêndios em Roraima piorou no dia 3 de fevereiro, quando foram registrados 165 focos de calor em um único dia. Desde então, os dados explodiram.
A organização tem monitorado o cenário e avaliou que a liberação de queimadas pelo governo durante o período de estiagem pode ter aumentado o número de focos.
“São dias com muitos focos de calor e isso chamou a atenção e levou o nosso time de pesquisa a olhar melhor para esses dados e perceber que a gente caminhava a passos largos para a quebra desse recorde que vinha desde 2007”, disse.
Pesquisador do Inpe, Fabiano Morelli também relaciona a intensidade do fenômeno meteorológico do El Niño com a crise climática, o que pode impactar nos altos índices recordes da estiagem.
“Em geral, as mudanças climáticas têm sim contribuído para fenômenos específicos, pontuais, locais e regionais com intensidades maiores. Então, mesmo dentro de um grande fenômeno meteorológico como o El Niño, a La Niña, pode acontecer mudanças de um verão mais intenso, de chuvas mais intensas, o que pode intensificar e favorecer a ocorrência do fogo na vegetação”.
9 cidades em situação de emergência
Nove municípios estão em emergência devido aos danos provocados pela estiagem. Para o decreto da situação, o governador de Roraima, Antonio Denarium (PP), considerou um parecer da Defesa Civil que citou escassez de água, prejuízos à agricultura e pecuária, incêndios florestais e problemas de saúde relacionadas às doenças respiratórias e outras enfermidades que poderiam ser causadas pela estiagem.
*Por Samantha Rufino, Yara Ramalho, Valéria Oliveira e Caíque Rodrigues, do g1 Roraima