Para os indígenas, aprender a língua materna é uma forma de manter viva a cultura e combater o racismo
O idioma do povo brasileiro não é só o português. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2010, o país registrou à época a existência de 274 línguas no Brasil, onde viviam 817.963 mil indígenas de 305 diferentes etnias.
Para os indígenas, aprender a língua materna é uma forma de manter viva a cultura e combater o racismo. Esse direito, inclusive, está na Constituição, que determina uma educação escolar indígena intercultural, bilíngue e diferenciada. A proposta surgiu na década de 70, das reivindicações do movimento indígena, como um contraponto ao projeto de apagamento das suas culturas.
Antigamente, os indígenas precisavam se adequar à língua portuguesa deixando para trás sua língua materna, de acordo com o artigo ‘Políticas de Línguas e educação escolar indígena no Brasil’, do doutor em Linguística Aplicada pela Unicamp, Rodrigo Cunha. Porém, as coisas começaram a mudar a partir da Constituição Federal de 1988.
O artigo 210 da Constituição assegura às comunidades indígenas a possibilidade de também utilizar nas escolas suas línguas maternas e os próprios processos de aprendizagem.
Em dezembro de 1996, o governo federal criou a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da Educação Nacional, que dedica dois capítulos (o 78 e o 79) ao ensino voltado para os indígenas. A LDB informa que fica a cargo da União desenvolver programas de ensino e pesquisa para oferecer educação escolar bilíngue e intercultural aos povos originários.
A importância de preservar
O especialista destacou também que a língua traz os códigos culturais, conhecimentos e a visão do mundo dos povos originários. No Brasil, por exemplo, houve uma perda enorme de línguas indígenas. “Com o passar dos anos, milhares de línguas foram exterminadas com a chegada dos colonizadores. Hoje temos em volta de 180 a 200 línguas indígenas. Mesmo com a língua de migração, mais a língua brasileira de sinais, essa diversidade não passa de um percentual do que deve ter sido no passado”, explicou o professor.
“À época, os indígenas já queriam reconhecimento de sua própria cultura. Isso resultou na criação da chamada educação escolar indígena. Eles queriam falar sua própria língua e, apesar da constituição dar esse direito, existia uma contradição, já que o Brasil tinha como língua oficial o português”,
contou Sanderson.
Línguas perdidas
A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) considera que qualquer língua com menos de 100 mil falantes está fortemente ameaçada de extinção. No Brasil, não existe nenhuma língua indígena que chegue ao número mínimo, ou seja, todas estão ameaçadas.
A língua mais utilizada no país, que tem origem no Amazonas, é o Tikuna. A estimativa é que a língua possua mais de 40 mil falantes. “Até a língua mais falada está sob forte ameaça. A gente nota que essas culturas têm vontade de preservar suas línguas, mas no contexto que elas estão inseridas é muito adverso”, disse o especialista.
Tecnologia
A partir de dados alarmantes, as autoridades vão criando políticas para fortalecer as línguas indígenas. Uma das principais é a criação de escolas bilíngues, mas existem aqueles que utilizam a tecnologia, seja por meio de aplicativos ou de teclados para computador que possuem caracteres específicos de algumas línguas indígenas.
“Você tem casos de línguas indígenas que são usadas por aplicativos, ou seja, os indígenas podem se comunicar em suas próprias línguas. O importante é fortalecer a cultura indígena em suas comunidades. Porém, existem padrões diversos e realidades distintas, como por exemplo, etnias que não tem mais falantes ou sociedades que só falam em suas línguas (casos de indígenas isolados)”, destacou Sanderson.
Escolas em Manaus
A rede municipal de ensino possui quatro escolas indígenas e 22 Centros Municipais de Educação Escolar Indígena (CMEEI) nas zonas urbanas, rodoviárias e ribeirinhas da capital. Atualmente atende aproximadamente 600 crianças e adolescentes indígenas e conta com 38 professores. A educação indígena é coordenada pela Gerência de Educação Escolar Indigena (GEEI) da Secretaria Municipal de Educação (Semed).
Manaus conta duas unidades especializadas em atender aos indígenas da região: a Escola Municipal Indígena Kanata T-Ykua (localizada na comunidade Três Unidos, na margem esquerda do rio Negro) e a Escola Municipal Indígena Arú Waimi (na comunidade Terra Preta).
A escola Kanata T-Ykua possui o nome de origem kambeba, que significa “luz do saber”, e foi incorporada ao município de Manaus em 2013, após redefinição da divisão político-geográfica do Estado do Amazonas.
Já a escola Arú Waimi possui nome em nheengatu (língua geral amazônica) e é uma homenagem póstuma ao pastor Laurentino Ricardo Aleixo (arú) e sua esposa Orcina Bruno (waimi).
As escolas indígenas “são fundamentadas nos princípios da especificidade, do bilinguismo, do multilinguismo, da diversidade cultural, da reflexão dialógica, da diferença, da organização comunitária e da interculturalidade, de forma a valorizar as línguas e conhecimentos tradicionais dos povos indígenas”. Para isso, informa a Semed, os professores que atuam nas escolas e CMEEI são contratados por meio de Processo Seletivo Simplificado (PSS) e devem morar na própria comunidade indígena, para que os costumes e tradições sejam mantidos.
As escolas indígenas seguem os componentes curriculares da secretaria, do ensino regular, mas também abordam temas indígenas e trabalham a cultura e costumes dos povos. “Desde a suspensão das aulas presenciais, as atividades com os alunos e professores acontecem de forma on-line, por grupo de WhatsApp ou por meio de atividades impressas, para os alunos que não têm acesso às plataformas digitais”, acrescentam.
A importância de aprender
A música também faz parte da vida dos povos originários. Há alguns anos, o indígena Zenobio Tikuna tem se dedicado à carreira artística. Aos 26 anos, o jovem já teve oportunidade de se apresentar em outros países, como Peru e Colômbia, mas confessou preferir cantar no Brasil.
“Eu canto na minha língua materna, a Tikuna. Por causa dos meus antepassados eu pude aprender a falar o meu idioma originário. Acho importante que todas as gerações aprendam a escrever e falar Tikuna, afinal, é através dela que vamos manter a nossa cultura viva”,
assegurou.
Para Zenobio, a sua principal força é justamente a saber a língua Tikuna. Nos eventos que participa, as pessoas acabam ficando curiosas com as canções do artista. “É como se fosse uma marca registrada. O indígena precisa valorizar as suas raízes e manter viva suas tradições”, destacou.
Ao ser questionado sobre sua escolaridade, o indígena afirmou que teve dificuldades para se adequar ao Português. “Acho que se tudo tivesse sido feito na língua Tikuna teria sido melhor para mim. Mas agradeço aos meus parentes que me ajudaram nesta caminhada”, afirmou Zenobio.
Dia da Língua Materna
Você sabia que existe o Dia da Língua Materna? Existe e é no dia 21 de fevereiro. A data celebra o primeiro idioma que uma pessoa aprende na infância. O dia foi instituído pela Unesco, o Fundo das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, em 1999, como forma de preservar as diferenças entre idiomas e promover a diversidade linguística e cultural.
Além disso, 2022 foi o ano de início da ‘Década Internacional das Línguas Indígenas da UNESCO‘ (2022-2032), um chamado para abordar a situação crítica das línguas indígenas em todo o mundo. Esta iniciativa visa envolver ativamente os falantes de línguas indígenas como os principais protagonistas na manutenção, proteção e revitalização da língua.
Para a Unesco, os governos dos países amazônicos, assim como a sociedade em geral, também devem ser conscientizados e informados sobre a diversidade linguística, e devem aprender a respeitar as culturas e línguas indígenas, reconhecer os direitos indígenas, proteger as terras indígenas e desenvolver alternativas econômicas sustentáveis contra a destruição ambiental na Amazônia.