Cultura indígena da Amazônia inspira tatuagens

As pinturas corporais são bastante usadas e cada etnia tem grafismos diferentes, bem como usos e significados próprios

Uma das heranças artísticas e culturais indígenas mais perceptíveis é a pintura corporal. Impossível não observar como o uso de grafismos e imagens fazem parte do cotidiano indígena. Mas o que é comum e até ritualesco para eles, para a sociedade moderna se transforma em inspiração para outra arte: a tatuagem.

Resultado do depósito de pigmentos coloridos insolúveis na pele, que permanecem definitivamente na camada sub-cutânea, a tatuagem é feita com o uso de agulhas especiais. A própria tatuagem surgiu entre tribos e clãs, como forma de ritual há pelo menos 3,5 mil anos. Com sua evolução, atualmente muitos povos a adotaram como forma de expressão.

Segundo a professora doutora Deise Lucy Oliveira Montardo, do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) em Manaus, as pinturas corporais são bastante usadas e cada etnia tem grafismos diferentes, bem como usos e significados próprios. “Cada grupo tem um mundo bem distinto, línguas, desenhos e significados distintos. E são mais de 300 etnias, ou seja, não é tão simples pensar que usam para guerra ou cerimônias. Os usos estão relacionados a organização social, parentesco, mitologia, cosmologia, entre outros aspectos”, explicou ao Portal Amazônia

Foto: Reprodução/Facebook-Afrânio Pires
Deise conta que uma das principais pesquisadoras na área é a belga Elsje Lagrou, antropóloga e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Elsje veio ao Brasil para estudar os povos ameríndios e fez mestrado e doutorado em Antropologia Social, com especialização em Antropologia da Arte. A belga tem livros de destaque na área como ‘Arte Indígena no Brasil: agência, alteridade e relação’, publicado em 2009, e ‘Quimeras em Diálogo: grafismo e figuração nas artes indígenas’, de 2013, em que participou da organização.

O Portal Amazônia procurou a professora, mas não obteve resposta. Outra pesquisadora indicada por Deise é Lux Vidal, que propõe uma abordagem diferente aos grafismos indígenas, porque busca associar o grafismo à organização social, além da comunicação.

Na prática

Por muito tempo – e ainda hoje em muitos locais – a tatuagem foi ligada a marginalização, principalmente pelo fato de ter se tornado popular primeiro com marinheiros e depois entre presidiários. Hoje é parte de expressões culturais para marcar momentos inesquecíveis, gostos pessoais, celebrações, entre outros.

Na Amazônia, os grafismos usados pelos indígenas em suas pinturas corporais, como os triângulos da etnia dessana, caíram no gosto dos apaixonados por tatuagens e que buscam identificar sua cultura. O tatuador amazonense Markito Affonso é um dos mais conhecidos em Manaus. Segundo o artista, dentro do tema, as tatuagens mais pedidas são os grafismos indígenas e onças, mas as figuras humanas também estão presentes.

Foto: Cedida/Markito Affonso

“Tenho 14 anos de profissão e tenho a minha loja de tatuagem há 11 anos em Manaus. Em todos esses anos, venho pregando a nossa cultura, tanto aqui quanto em todos os lugares do Brasil e do mundo por onde já tive a oportunidade de tatuar, como Rio de Janeiro, Amsterdam [Holanda], Lake Worth [EUA]. Com isso, muitos já me conhecem por tatuar o estilo amazônico e ‘a falta de orgulho’ está acabando. Muitos já querem levar na pele um pouco da nossa cultura. Eu não conheço o significado dos grafismos, que diferente dos Polinésios, por exemplo, nossas tribos são mais pacíficas, não conheço se existem desenhos específicos para guerras ou determinados rituais”, conta.

Para Markito, a cultura amazônica é muito rica “tanto em personagens quanto em grafismos e símbolos”, mas “infelizmente” falta reconhecimento e valorização do próprio povo amazônico. “Mesmo que ‘a falta de orgulho’ pareça estar acabando, nosso povo ainda parece não ter orgulho de nossa história. São poucos que procuram por essa temática para fazer uma tatuagem. Procuram mais os temas orientais ou tribais polinésios”, explicou. “Na cultura amazônica temos mitos e lendas que dariam lindos trabalhos, assim como grafismos indígenas que seriam belíssimos tribais”, completou.

Foto: Reprodução/Facebook-Afrânio Pires

O artista avalia que é importante conhecer a própria cultura e valorizá-la. “Procuro sempre sugerir o estilo amazônico, dependendo da ideia do cliente. Cresci ouvindo as lendas da cobra grande, curupira, mapinguari, dentre outras, e hoje eu continuo contando, porém, através das tatuagens que eu faço”.

Representatividade

Ainda segundo Markito, as inspirações estão em formas baseadas na natureza, mas sempre em linhas retas e com poucas curvas. “As tintas são o preto do jenipapo e o vermelho do urucum. Algumas etnias desenham as formas de animais, como a forma geométrica que forma os gomos do casco do tracajá. Já em outras, as pintas da onça, e outras podem usar linhas retas sem nenhum siginificado mesmo, apenas como uma forma”, explica.

Markito busca, inspirado nisso, transformar os símbolos em linhas perfeitas com uma pigmentação preta, cujo resultado final considera um “tribal amazônico”. “Uma das que eu mais gostei de tatuar foi de um pernambucano que se considera manauara e pediu pra tatuar na metade da perna algo da nossa cultura e na outra metade a cultura de Pernambuco. Fiz o Teatro Amazonas dentro de um igapó com um caboclo pescando”, contou.

O tatuador de Macapá (AP), Evandro Spawn, também possui trabalhos relacionados à cultura indígena, no entanto, ainda são poucos. “São muito raros aqui. A pessoa procura mais desenhos comerciais mesmo, dentro do que está na moda”, afirmou. Um exemplo feito por ele é justamente o que lembra o casco de uma tartaruga da Amazônia. 

Outro tatuador conhecido em Manaus, Afrânio Pires, contou ao Portal Amazônia que quando alguém o procura interessado em um trabalho relacionado ao tema indígena, ele faz algumas recomendações e seus significados. “Geralmente o grafismo das tribos amazônicas usadas são do Xingu, como os Kaiapó, que prezavam por esse estilo. Outra inspiração vem das cerâmicas marajoaras, cujos desenhos são usados em adaptações para tatuagens tribais”, explica. 

Foto: Reprodução/Facebook-Afrânio Pires

Entre as principais também estão imagens de indigenas e animais. “Muitas pessoas estão atrás de algo que identifique sua origem, que tenha a ver com a nossa localidade, então eu sugiro muito essas ideias. Pegando em um contexto geral, de estilo, constumo aplicar essa ideia em cima das tendências que ja existem, são mais tradicionais e chegamos em uma confluencia”, conta.

 
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