Poraquês vivem em “condomínios” submersos nas margens dos igarapés do rio Preto, no Amazonas

Espécie da bacia do rio Negro aproveita os espaços entre as raízes e ocos de árvores para fazer seus ninhos e cuidar dos filhotes por quatro a seis meses, saindo apenas à noite para caçar.

Estar em um igarapé, riacho que nasce na floresta e desemboca no rio, pode ser o mesmo que visitar um condomínio quando se trata da bacia do rio Negro. Nesse caso, parte dos moradores são poraquês da espécie Electrophorus varii, que emitem pulsos elétricos de até 650 volts.

Essa foi a situação encontrada pela Expedição DEGy Rio Negro durante sua passagem pelo rio Preto, no município de Santa Isabel do Rio Negro, no Amazonas. Durante um percurso de cerca de 3 quilômetros por um igarapé na margem oposta à comunidade de Campina do Rio Preto, os pesquisadores detectaram sinais elétricos dos poraquês, mas não avistaram nem conseguiram capturar nenhum exemplar.

“Na vegetação típica das margens dos igarapés, o igapó, muitas vezes as bases dos troncos ficam ocas. Algumas formam domos em que os poraquês podem se abrigar e subir para respirar sem precisar sair da toca [a respiração desses peixes ocorre com a absorção de ar atmosférico por meio de um órgão respiratório na boca]. São locais ideais para pôr os ovos, fertilizá-los e cuidar dos filhotes”, explica Carlos David de Santana, pesquisador associado ao Museu Nacional de História Natural, da Smithsonian Institution, nos Estados Unidos.

Além desses ocos, o solo cheio de raízes das margens pode ser bastante fofo, permitindo que os poraquês se aproveitem dos túneis formados naturalmente, que podem adentrar vários metros a margem dos igarapés.

“Quando o nível das águas subir e os filhotes já forem independentes, os poraquês vão transitar por toda a área alagada do igapó, sendo muito mais fácil visualizá-los”, completa Santana.

Essas informações essenciais sobre o ciclo de vida da espécie são conhecidas graças ao trabalho de Douglas Bastos, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) e registradas pela primeira vez em seu trabalho de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Biologia de Água Doce e Pesca da instituição, publicado em 2020.

“Vimos esse mesmo comportamento na Reserva Adolpho Ducke, em Manaus, e parece ser o padrão da espécie”, afirma Bastos.

A Agência FAPESP acompanhou a expedição liderada pelo Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (MZ-USP) desde a saída de São Paulo, a subida do rio Negro de Manaus a Santa Isabel do Rio Negro, até o desembarque em Manaus e a volta para a capital paulista. Os relatos compõem a nova edição da série Diário de Campo.

A Expedição DEGy Rio Negro ocorreu no âmbito do projeto “Diversidade e Evolução de Gymnotiformes” (DEGy), apoiado pela FAPESP.

Conjunto habitacional 

Em fevereiro, quando ocorreu a expedição, era esperado que os rios e igarapés estivessem mais cheios. Porém, a seca histórica na região amazônica ainda está se refletindo na abundância de peixes na bacia do rio Negro.

Os que sobreviveram provavelmente migraram para as cabeceiras e o tempo de recuperação da fauna do fundo dos rios ainda é uma incógnita, segundo os pesquisadores da expedição.

Para os poraquês, porém, a situação não está das piores. É no período seco que ocorre a maturação sexual e que eles localizam e colonizam os abrigos formados nos igarapés para se reproduzir e cuidar dos filhotes. Os pequenos poraquês podem ser acompanhados pelos pais até os seis meses de vida, na transição para o período chuvoso, quando chegam a cerca de 15 centímetros de comprimento.

Nessa fase, os pais ensinam os filhotes a caçar. Depois que se tornam independentes, vivem solitariamente o resto do ano até alcançarem a maturidade sexual, quando começam a procurar seus pares para formar os casais na próxima seca.

“É um comportamento muito diferente dos poraquês da bacia do Xingu (Electrophorus voltai), que na seca se agrupam em lagos ou na boca dos igarapés, se abrigando apenas da radiação solar, e caçam coletivamente no início da manhã e início da noite”, lembra Santana sobre outra espécie de poraquê, que emite descargas de até 860 volts.

Durante dois dias, Santana e os doutorandos do MZ-USP Laura Donin e Raimundo Nonato Gomes Mendes Júnior, que também é analista ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), percorreram o igarapé do rio Preto em busca dos poraquês.

O aparelho que detecta os sinais dos peixes-elétricos apitava a cada 100 ou 200 metros, indicando a presença dos animais em diversos barrancos.

“É como um condomínio ou um conjunto habitacional. Os abrigos estão muito próximos uns dos outros”, 

surpreendeu-se Mendes, estreante na bacia do rio Negro, que nunca havia observado tamanha densidade de indivíduos.

Em um dos locais, uma vara introduzida no chão causou uma mudança nos pulsos elétricos emitidos pelo indivíduo monitorado pelos pesquisadores. “Um choque!”, espantou-se Mendes. O animal fora atingido, mas não saiu da toca. Por conta da baixa condutividade elétrica das águas na bacia do rio Negro e a distância entre os pesquisadores e os poraquês, o choque emitido não atingiu a equipe.

“Seria preciso que os poraquês estivessem bastante próximos para que nós sentíssemos o choque. Em águas de maior condutividade, como as do rio Amazonas, talvez o tivéssemos sentido levemente”, explica Santana.

No dia seguinte, os pesquisadores foram novamente ao local, dessa vez levando anzóis, iscas e duas redes. Sem sucesso com os anzóis colocados na saída das tocas, deixaram as redes para passar a noite no local. A ideia era que, ao sair para se alimentarem, os poraquês ficassem presos nas malhas.

Quando os pesquisadores voltaram ao local pela terceira vez, apenas traíras e bagres estavam emaranhados nas redes. Esses são outros peixes que se beneficiam dos túneis nas margens para se abrigar. Os poraquês seguiam escondidos.

488 volts

Para demonstrar o procedimento realizado quando capturam um poraquê em campo, uma parte da equipe foi até o Bosque da Ciência, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus, ao fim da expedição.

Um poraquê da espécie comum na bacia do rio Negro (Electrophorus varii) é mantido em cativeiro no local. Depois de cercar o animal com redes numa parte mais rasa do tanque, dois eletrodos (negativo e positivo) foram colocados na água e conectados a um aparelho que amplifica as descargas fracas, usadas pelo peixe para se comunicar e se localizar no ambiente.

“Com isso, conseguimos medir algumas propriedades da onda elétrica, como a forma, a frequência e amplitude, características importantes para entender como a bioeletricidade evoluiu entre esses animais”, explica Mendes.

Esse tipo de descarga é uma característica de todas as espécies de peixes-elétricos, tanto dos poraquês como dos sarapós. Cada espécie emite ondas elétricas com forma, amplitude e frequência específicas.

As descargas médias e fortes, por sua vez, são uma exclusividade dos poraquês e emitidas por meio de diferentes órgãos elétricos. Para medi-las, o animal deve estar fora da água, sobre uma lona plástica que isola o animal em relação ao solo.

Um eletrodo negativo é posicionado na cauda e um positivo na cabeça, ambos ligados a um osciloscópio digital, aparelho que mede, entre outras características, a tensão elétrica em volts, popularmente conhecida como “voltagem”. O exemplar do Inpa emitiu uma descarga forte de 488 volts, mas essa espécie pode emitir até 650. Com o choque, paralisa as presas e as engole, além de afastar potenciais predadores.

“De modo geral, os poraquês são animais muito resilientes, sobrevivendo aos ambientes mais inóspitos. A evolução da sua anatomia, especialmente dos órgãos elétricos, e de suas descargas certamente contribuiu para que chegassem até aqui. É um grande quebra-cabeça que estamos ajudando a montar”, encerra Mendes.

Acompanhe os outros episódios da série Diário de Campo em: agencia.fapesp.br/diario-de-campo.

*O conteúdo foi originalmente publicado pela Agência FAPESP, escrito por André Julião, com a colaboração de Phelipe Janning.

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