Após construção de hidrelétricas oferta de peixes cai no Madeira

A comunidade pesqueira do Rio Madeira, que integra a bacia Amazônica teve participação decisiva em pesquisa que comprova queda de 39% da produção média anual de pescado, após a construção das hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau. As usinas, que desde 2012 compõem o Sistema Interligado Nacional, alteraram o ciclo hidrológico natural, uma das potenciais causas do sumiço dos peixes no maior rio do mundo em ictiofauna.

A pesquisa desenvolvida pelo doutorando Rangel Eduardo dos Santos, do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), teve seus resultados publicados em artigo na revista americana Fisheries Management and Ecology, com participação de pesquisadores das universidades federais do Amazonas, de São João del-Rei e do Sul da Bahia. A redução da pesca, já prevista pelos próprios pescadores e medida antes e depois do represamento do rio, acarreta prejuízos anuais estimados em mais de R$1,3 milhão.

A colônia Dr. Renato Pereira Gonçalves, ou Z-31, localizada à jusante das usinas, no município de Humaitá, Amazonas, é dividida em 17 pontos de pesca. Rangel Santos, que imergiu na vida da colônia, afirma que foi surpreendido pela riqueza das informações fornecidas pelos pescadores. “Pude constatar que, de domingo a domingo, o produto da pesca é desembarcado em um flutuante ancorado no Rio Madeira, onde um funcionário anota, à mão, a data, o nome popular das espécies e o volume (em quilogramas) dos peixes capturados”, conta.

Segundo ele, cobra-se uma taxa por peso da carga, que segue para comercialização no Mercado Municipal de Humaitá, onde a catalogação é refeita. “Esse processo garante um banco de dados pesqueiro, de mais de 20 anos, na região”, relata. O estudo é embasado pelos inúmeros cadernos preenchidos pelos colonos, somados aos dados anteriores à construção das usinas, fornecidos pelos demais pesquisadores que assinam o artigo. 

Hidrelétrica de Santo Antônio | Foto: Beethoven Delano/Arquivo Pessoal

No período anterior ao represamento (2002-2011), foram capturados, em média, 22,9 mil quilos de pescado por mês. Após a instalação das usinas (2011-2017), o volume caiu para 15 mil quilos. No conjunto analisado, houve redução média anual de 267 mil kg para 163,1 mil kg de peixes.

Somente a instalação das usinas, de acordo com a análise, provocou uma redução imediata de 10% no estoque pesqueiro, sem considerar outros fatores. No artigo, Rangel Santos pondera que é difícil mensurar qual impacto das hidrelétricas é mais danoso ao ecossistema. “Alguns fatores ecológicos são notáveis, como alteração na qualidade da água, turbidez e condutividade, dos quais os peixes dependem para realizar suas funções biológicas”, observa.

Ciclo às avessas

No entanto, na avaliação do pesquisador, a alteração no ciclo hidrológico natural do rio é o fator que mais interfere na qualidade e quantidade do pescado na região, pois é esse processo que regula a concentração dos cardumes e os períodos de migração. “A troca dinâmica e fértil entre o ambiente terrestre e o ecossistema aquático contribui para a riqueza da ictiofauna”, afirma Rangel.

Durante as cheias, o rio inunda as florestas, atraindo os peixes para a fartura de alimentos oferecida pela matéria orgânica submersa. É o momento propício para o desenvolvimento reprodutivo e aquisição de energia para a futura migração. Quando as águas começam a baixar, os peixes, orientados por suas condições abióticas, retornam à calha central do rio. É nesse período que os 1.655 pescadores registrados de Humaitá investem em combustível, gelo e contratam ajudantes para a pescaria, que pode durar até 15 dias.

Entretanto, a vazão do rio, agora controlada pelas usinas para garantia da eficiência energética, tem provocado alteração nesse ciclo. “No período das enchentes, vem ocorrendo diminuição da média mensal da fluviometria, e na vazante, significativo aumento dessa média. Essa alteração está afetando toda a biologia reprodutiva das espécies locais, que, ao perceberem o rio subindo, novamente se dispersam para as florestas alagadas, o que faz o pescador perder em qualidade e quantidade do pescado.”

Foto: Rangel Santos/UFMG

O prejuízo é constatado também com a redução de espécies migratórias, de maior valor econômico na região. Nas águas do Rio Madeira, que nascem dos Andes, na Bolívia, e percorrem os estados de Rondônia e Amazonas, vivem em torno de 1 mil espécies de peixes. Boa parte delas, como os siluriformes (pele de couro), tem o Amazonas como habitat, mas percorrem até três mil quilômetros para se reproduzirem na montante do Madeira. Mas, com o bloqueio da rota imposto pelas usinas, explica o pesquisador, “os peixes não conseguem cumprir seu percurso e se reproduzir, o que resulta no desaparecimento das populações ao longo do tempo”. Por isso, os impactos chegam à Bolívia e ao Peru.

No artigo, os pesquisadores destacam ainda a importância social e cultural do Rio Madeira, que faz da região a maior consumidora per capita de peixes do mundo – 369 g por dia, ou 135 kg por ano. E o pescado, além de ser a única fonte de proteína para grande parte da população de 52 mil habitantes, gera atividade de subsistência de difícil substituição pela população local.

Artigo: The decline of fisheries on the Madeira River, Brazil: the high cost of the hydroeletric dams in the Amazon Basin
Autores: Rangel Eduardo dos Santos, Ricardo Motta Pinto Coelho, Rogério Fonseca, Nadson R. Simões e Fabício B. Zanchi

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