Essa é uma palavra que todo nortista deveria conhecer, uma vez que somos delineados pela vida ribeirinha, mas é preciso cuidado: como tudo o que vale a pena, ela tem mais de um significado.
Margem.
Essa é uma palavra que todo nortista deveria conhecer, uma vez que somos delineados pela vida ribeirinha, mas é preciso cuidado: como tudo o que vale a pena, ela tem mais de um significado.
Margem é a área que se afasta do centro, que está às bordas, e tudo o que se situa nesse espaço é chamado de “marginal”. É com tal sentido que uso a palavra neste texto, como uma forma de descrever uma produção literária tão intensa quanto um banzeiro, tão incontrolável quanto as ondas dos rios-mares que nos dão forma e expandem os nossos limites.
Faço isso porque, de todas as artes, a literatura é, talvez, a que mais se concentra no centro, e não nas margens. É uma linguagem que se aproxima do culto, de quem conhece uma constelação de autores clássicos de renome internacional, ou de quem acompanha as tendências mais lidas da lista do New York Times ou do topo da Amazon.
Mas como todo nortista que se preze, sei que a vida, a vida de verdade, não está no centro, mas na margem, nesse lugar em que a literatura, livre das normas e das regras de etiqueta do centro, tem a oportunidade de correr como bem quiser, o que para uns significa “selvagem”, mas, para outros, quer dizer “natural”.
Quando falamos de literatura marginal, falamos do texto que foge das maneiras tradicionais não apenas de expressão, mas também de publicação.
Enquanto escritor nortista, conheço bem a dificuldade de publicar nessa parte do país, e por publicação, quero dizer conseguir o interesse de uma grande editora, de um grande público, e realizar o sonho de todo escritor: ver seu livro na estante de livrarias, vê-lo recomendado pelo algoritmo do Instagram, receber uma proposta inusitada de adaptação para o cinema ou televisão.
Enquanto escritor, sei que essa é a realidade de quase nenhum de nós.
E mesmo assim, como a vida nas margens, a literatura não espera pelo centro para acontecer.
Manaus, cidade marginal, tem seus autores consagrados, mas é em suas bordas que vê um universo de textos acontecerem, tomarem forma, às vezes suaves, às vezes violentas. É na margem leste da cidade que encontramos, por exemplo, a drag queen Aritana Tibira, persona criada pelo mestrando em estudos literários Maicol Barbosa para assinar seus contos, histórias que retratam uma Manaus que costumamos ver mais no noticiário do que nos livros.
O simples ato de contar essas histórias – de violência, de horror, de vida boêmia presente na trilogia ‘Dejetos’ – coloca a artista não apenas como escritora, mas como uma verdadeira performer da expressão preta LGBTQIA+ da cidade, revivendo, por exemplo, a memória do Club A2, que marcou a vida noturna local há quase uma década, ou os casos de visagem presentes não apenas nas matas, mas também na casa daquele vizinho estranho que mora no fim de cada rua de Manaus.
São textos que desafiam o gosto “refinado”, o padrão de “qualidade de centro” exigido pelos grandes nomes da indústria editorial, e que, talvez, não encontre espaço em tais páginas. Mesmo assim, essas histórias vivem e ondulam na forma de zines, livretos independentes produzidos pela própria Aritana de forma artesanal, que não espera pelo “sim” das editoras para ver seu nome na capa de uma publicação.
O zine é uma forma de publicação que contraria a permissão das grandes editoras, mas que recebe de portas abertas todo tipo de pessoa que deseja colocar sua voz no mundo, mesmo que das margens. É o caso de Márcia Antonelli, conhecida figura da cena noturna do Centro de Manaus, transescritora (termo que usa para se descrever) que, seja no Bar do Cavalo ou de mesa em mesa no Bar do Armando, vende textos com potência autobiográfica como a saga ‘A paixão segundo São Cipriano’, que entrelaça um drama bem íntimo com a própria história da cidade, em uma mistura que só lembro de ter visto semelhante em ‘Memória de um certo Oriente’, de Milton Hatoum.
“Escrevi estes três breves contos para que você se divirta, reflita e também me ajude a viver. Não espero que goste. Leia apenas”, é uma das declarações poderosas com que Antonelli abre uma de seus muitos livretos, ‘Não banque a loka e pague logo meu acué’, cuja primeira história me fez sentir mais cristão acerca do amor do que muita missa, somente para, na página seguinte, jogar esse sentimento pela janela junto com ela; lá pela metade do zine, Antonelli deixou uma lição com gosto de sopa em mim: uma pessoa com suas histórias, com sua vontade feroz de viver e escrever, tem todos os motivos para odiar a vida e suas margens, mas “definitivamente, o ódio é para os fracos”.
Os trabalhos de Antonelli já foram adaptados para o audiovisual, e a autora conta com um documentário sobre sua biografia e um futuro lançamento com a Editora Transe para 2024, ‘O desentupidor de fossas e outras histórias’. Recorrer a editoras também independentes, como a Transe, é mais uma possibilidade para publicação de autores locais que não gozam de um sobrenome notório nem o privilégio de ter nascido em uma região com mercado editorial aquecido. Assim o faz Francisco Ricardo, que, além de se aventurar como escritor, já tinha um trabalho muito bem consolidado como artista visual, cenógrafo, diretor de arte e produtor audiovisual.
Com um discurso muito assertivo sobre as dificuldades enfrentadas por um multiartista nortista, preto e bicha, Ricardo é igualmente empenhado em contorná-las, o que lhe valeu não apenas o prêmio de melhor direção de arte no Festivais de Cinema de Gramado e Amazônia – Olhar do Norte, mas também um lugar entre os contemplados pela Lei Paulo Gustavo (como foi também Márcia Antonelli), que lhe permitiu realizar mais uma publicação independente em que é autor, editor e organizador, como é próprio dos escritores locais se responsabilizarem por cada etapa de sua produção.
Com contos publicados em revistas literárias – outra alternativa de publicação de custo baixíssimo –, Ricardo prepara para 2024 um e-book em conjunto com o grupo Dignidade Negra, incluindo outros vinte escritores LGBT’s do país inteiro. Além disso, junto com as autoras Carla Valéria e Bianca Lima, assina as histórias de ‘Rio negro de pessoas pretas’, um livro sobre a experiência negra no Estado do Amazonas que contará também com versão em audiobook.
Autorias compartilhadas desse tipo são uma estratégia comum da produção independente para reduzir gastos com publicação e potencializar o alcance das obras, mas as campanhas de financiamento coletivo também são uma forma excelente para lançar autores, recurso pelo qual Ricardo lançará As margens de um rio preto, obra selecionada para integrar a coleção Machado Preto, iniciativa da editora Toma Aí um Poema que visa democratizar e projetar o trabalho de autores negros.
Democratizar, aliás, é a palavra que melhor descreve o objetivo do fenômeno marginal, uma vez que não basta incentivar as pessoas que habitam esse espaço a consumirem literatura (especialmente de centro), mas também a produzi-la, obedecendo o movimento do banzeiro: não apenas do centro à margem, mas também da margem ao centro. Desfaz-se aqui, que nem pegada na areia, a figura do escritor pomposo, escrevendo em solidão cercado pela biblioteca encouraçada de sua mansão enquanto toma um copo de uísque, após ser reconhecido em São Paulo. Nem todos temos uma biblioteca pessoal, ou mansão, ou tempo em solidão, ou recursos para sair do Estado, e há ainda quem prefira cerveja.
Às margens, todos podemos ser escritores.
Sobre o autor
Jan Santos é autor de contos e novelas, especialmente do gênero Fantasia. Mestre em Literatura pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e com graduações em Língua Portuguesa e Inglesa, é um dos membros fundadores do Coletivo Visagem de Escritores e Ilustradores de Fantasia e Ficção Científica, além de vencedor de duas edições dos prêmios Manaus de Conexões Culturais (2017-2019) e Edital Thiago de Mello (2022).
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