Literatura que Orgulha

De rosto indígena e maquiagem europeia, Manaus é em si uma contradição que por vezes a metáfora não dá conta de conciliar.

“Manaus é uma cidade absurda, sombria e surreal”.

Assim descreve Márcia Antonelli no lançamento de seu primeiro livreto editorial “Hematofilia”, publicado pela Editora Transe, que na ocasião, também lançava em formato físico a obra “Língua de Prata e outras histórias”, de Felipe Cavalcante, no Espaço Cultural Sereia Mística, na rua Luiz Antony.

Para mim, que acompanho essas duas personalidades já há algum tempo e vivo em Manaus desde o nascimento, é interessante pensá-los enquanto personagens dessa grande narrativa que é esta cidade

Foto: Jan Santos/Acervo pessoal

De rosto indígena e maquiagem europeia, Manaus é em si uma contradição que por vezes a metáfora não dá conta de conciliar.

Nos últimos anos, a capital esteve entre as lideranças na luta pela instalação de um pensamento conservador no Brasil, o que custou a saúde e até mesmo a vida de seus habitantes por mais de uma vez, e mesmo que se situe no coração da Amazônia brasileira, busca incessantemente uma identidade que não é sua, mutilando os próprios pés para que caibam em um sapato que não lhe serve.

Manaus se diz conservadora, mas quem olha de perto percebe que esse discurso não passa da capa.
No Mês do Orgulho, como em qualquer outro momento, é interessante lembrar das personagens que de fato sabem quem é Manaus de verdade, quem é Manaus de noite, quando não está coberta pelas vestes de seda que insiste em usar mesmo com um calor de 38º.

Como em qualquer espaço onde existam seres humanos, a comunidade LGBTQIA+ da cidade também é uma força pulsante e impossível de ser ignorada. Antonelli, transescritora cujo trabalho é mais acessível nas mesas de bar do que em uma livraria, e Cavalcante, cuja presença online o situa tanto como escritor de fantasia quanto como advogado da visibilidade bissexual, são vozes que insistem em reverberar nesse espaço controlado pela editoria tradicional, marcando sua presença na literatura local mesmo quando essa é indesejada.

Como diz a pesquisadora Regina Dalcastagnè, a literatura (assim como a alma de Manaus) é um território em disputa.

Em “Hematofilia”, Márcia Antonelli não se esquiva da brutalidade que acomete os becos e vielas da cidade, sendo a autora, em resposta, também brutal. Durante o lançamento, em momentos que eu posso descrever apenas como hipnóticos, Antonelli lê um de seus contos (chamados de Movimentos) sobre uma musicista viciada em dor. A autora, tão parte da vida noturna local quanto o próprio álcool, apresenta assim as delícias e as dores da violência, em um retrato honesto de uma Manaus que é tudo menos parisiense. “Ler a Márcia é ir aonde eu não tenho coragem”, disse uma das participantes do evento, e eu não poderia concordar mais.

Já Felipe Cavalcante aproveitou o momento para ler uma das histórias que acompanham “Língua de Prata”, uma coleção de contos de Fantasia que busca mostrar sua versatilidade enquanto escritor, oferecendo uma série de experimentos literários que vão desde o horror gótico ao realismo mágico. A história escolhida fala de uma criança que, por ter ramos e flores e folhas brotando de seu corpo, é constantemente podada pela mãe, e não coincidentemente, a mutilação é utilizada mais uma vez como alegoria para aquela identidade que o mundo ao redor não está preparado para cultivar (mas para cortar, é rápido).

Foto: Jan Santos/Acervo pessoal

Antonelli e Cavalcante não apenas trazem diversidade à produção literária de uma cidade que se recusa a ver-se diversa, mas trazem ruídos, incômodos e desconfortos a uma mentalidade engessada, que não percebe que está morrendo. A mutilação que tal pensamento impôs a corpos divergentes é quem enfrenta agora o fio da faca, como os enredos dessas pessoas provam. Então secundários, agora são essas personagens de Manaus que se tornam protagonistas, anti-heróis e anti-heroínas feitos de carne e osso e sangue e dor em um espaço em que a ilusão derrete no asfalto quente.

Palmas aqui também para a Editora Transe, que deu suporte para que tais vozes soassem afiadas. A parceria entre os envolvidos criou um momento bastante especial na noite manauara do dia 08 de junho de 2024, um exemplo da qualidade que surge quando lugares, personalidades e vozes diferentes se encontram para dizer a que vieram.

Meus parabéns a todos que tornaram aquele lançamento possível. Que sintamos Orgulho desses novos personagens da literatura local.

Sobre o autor

Jan Santos é autor de contos e novelas, especialmente do gênero Fantasia. Mestre em Literatura pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e com graduações em Língua Portuguesa e Inglesa, é um dos membros fundadores do Coletivo Visagem de Escritores e Ilustradores de Fantasia e Ficção Científica, além de vencedor de duas edições dos prêmios Manaus de Conexões Culturais (2017-2019) e Edital Thiago de Mello (2022).

*O conteúdo é de responsabilidade do colunista

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