A literatura amazônida ainda não existe

Não falo apenas de obstáculos metafóricos, mas de fronteiras mesmo, geográficas, que por vezes colocam um limite no alcance de nossas publicações.

Foto: Jan Santos/Acervo pessoal

Por Jan Santos – jan.fne@gmail.com

Qualquer pessoa que publica neste estado que conseguiu um pouquinho mais de projeção já percebeu uma verdade dura: não basta ser bom, tem que romper fronteiras, e às vezes nem assim.

Não falo apenas de obstáculos metafóricos, mas de fronteiras mesmo, geográficas, que por vezes colocam um limite no alcance de nossas publicações.

Recentemente, eu e alguns colegas escritores do Coletivo Visagem passamos por uma situação que nos lembrou dessa verdade. Decidimos nos inscrever em um evento de Literatura Fantástica na Capital do Sucesso, São Paulo, e, para a nossa surpresa, fomos convidados a apresentar um pitching sobre um de nossos projetos em conjunto. O negócio é o seguinte: quando você é um artista no Norte e não recebeu “nãos” o suficiente na vida, e de repente alguém da Capital do Sucesso enxerga o que você faz demonstra interesse, expectativas são criadas.

Não muitas, porque mesmo não tendo “nãos” o suficiente, já tive algumas dezenas para entender que o interesse do Sudeste é algo muito pontual, como acabou sendo o caso. Acontece que, para nossa surpresa, provavelmente viram nossa inscrição no evento, o fato de sermos de Manaus e logo tiraram a conclusão que o brasileiro médio, mas que se acha por demais inteligente e culto, costuma tirar: se são de Manaus, logo são indígenas. Isso não nos foi perguntado, tampouco estava descrito no material que enviamos: foi totalmente presumido.

Imagine a decepção deles – e a nossa, quando entendemos isso – quando perceberam que investiram seu precioso interesse em autores de Manaus que sequer eram indígenas?? Considerei isso um duplo desrespeito: por um lado, fomos novamente encaixados em um estereótipo bem familiar a todo amazonense, e por outro, uma ofensa aos próprios povos indígenas, que habitam cada canto deste território e não estão restritos à região Norte, mas são vitimados também por outro estereótipo familiar.

De repente, nosso pitching já não era tão interessante, passou a ter defeitos que não tinha antes, e o que pareceu uma boa oportunidade de romper as fronteiras já mencionadas não passou de mais uma negativa daqueles que guardam os portões da oportunidade. Afinal, não éramos a Amazônia que desenharam em suas mentes, aquela que o estrangeiro espera devorar na emergência da COP-30, daqui a uns meses.

Nossa Amazônia, afinal, não se vende do mesmo jeito.

Mais uma vez, não é como se eu esperasse que isso nos abrisse as portas de uma editora que nos levasse a turnês literárias e sessões de autógrafo pelo Brasil (tenho minhas sérias dúvidas se isso sequer é possível).

Conheço sobre o interesse de baixo o suficiente para entender que não podemos apostar nossas fichas em um reconhecimento que é repetidamente negado. A questão é que a expectativa é inevitável, e deuses sabem que trabalhamos duro demais para nunca achar que um dia seremos finalmente vistos.

Por que a diversidade que é produzida nos estados do Norte ainda não é compreendida? Não é abraçada? Não é reconhecida como plural?

A imagem mostra um grupo diverso de sete escritoras nortistas cujos rostos foram rasurados em alusão ao apagamento comentado no texto, a despeito de sua movimentação e contribuição para a literatura da região. Foto: Jan Santos/Acervo pessoal

Não pretendo responder isso, porque cada negativa é uma resposta que, por mais que seja diferente, brota da mesma intenção.

Mais uma vez, seguimos colonizados, porque o que é daqui mal pode sonhar em chegar lá e prosperar, mas o movimento contrário não só é aceito como incentivado, e deuses nos proíbam de questionar tais iniciativas, quando é o sudestino que vem com sua bandeira e projetos nos ensinar o que é cultura, como fazer cultura, o que temos feito de errado durante todo esse tempo.

Porque o que já fazemos não existe, não sem a benção que vem de baixo.

Quando o movimento é esse, vemos a mesma história se desenrolar: feiras, saraus, festivais e demais eventos que buscam fortalecer a literatura amazônida. Agora, como pretendem fazer isso pagando cachês gordos para escritores de fora e nos obrigando a pagar por um espaço, por uma hora, por atenção, eu realmente não entendo. Como nos fortalecer nos enfraquecendo?

Eu entendo, atrai público celebrar o que passa no horário nobre, e já não tem um Programa da Fátima para servir de plataforma para os pobres artistas do Norte. Eventos precisam de público, e, colonizados, precisamos apenas aceitar que é assim mesmo, tudo pela visibilidade.

O que mata fazer uma curadoria? O que mata ir além da primeira página de resultados do Google?

O que mata não matar um artista?

Caso o mundo não saiba, não paramos de escrever com o Clube da Madrugada, e continuamos escrevendo mesmo quando nossas histórias não são adaptadas em rede nacional.

A imagem mostra um grupo de cinco escritores cujos rostos foram rasurados em alusão ao apagamento comentado no texto, a despeito de sua movimentação e contribuição para a literatura da região. Foto: Jan Santos/Acervo pessoal

A nós, só nos resta isso mesmo, continuar escrevendo. Mulheres amazônidas produzindo suas versões do feminino neste nosso território belo e hostil, LGBTQIA+ contando seus cantares, indígenas conjurando realidades que não exatamente conversam com o “índio” criado por José de Alencar e espalhado nos livros didáticos, pessoas mostrando que são tão diversas quanto as estrelas no céu ou peixes no rio.

Continuamos publicando não porque é agradável ser drenado pelo deleite de quem ainda coloniza, mas porque é pior a dor de quem não expressa. Só quem sufocou uma palavra na garganta sabe a necessidade de gritar em uma página, e poucas amarras doem mais do que essas.

Do Sudeste veio o Movimento Antropofágico, mas isso só vale quando não são eles os devorados.

Mal sabem que é dessa carne que faremos nosso sustento e nos escreveremos na existência, seja por bem ou por mal, da mesma forma que temos feito há décadas.

Apesar de vocês, amanhã há de ser outro dia, né?

Sobre o autor

Jan Santos é autor de contos e novelas, especialmente do gênero Fantasia. Mestre em Literatura pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e com graduações em Língua Portuguesa e Inglesa, é um dos membros fundadores do Coletivo Visagem de Escritores e Ilustradores de Fantasia e Ficção Científica, além de vencedor de duas edições dos prêmios Manaus de Conexões Culturais (2017-2019) e Edital Thiago de Mello (2022).

*O conteúdo é de responsabilidade do colunista

Publicidade
Publicidade

Relacionadas:

Mais acessadas:

Real Forte Príncipe da Beira completa 75 anos de tombamento pelo Iphan

Também reconhecido como sítio arqueológico, o Forte é guardião de quase 250 anos de história e elemento integrante da cultura rondoniense.

Leia também

Publicidade