Foto: Reprodução/Chess
Por Jan Santos – jan.fne@gmail.com
O que define uma boa literatura?
Para mim, é uma pergunta fadada ao fracasso. Há tantos livros no mundo quanto peixes no mar, e para cada um, há um número ainda maior de leitores que podem apreciá-lo por sabe-se lá quais qualidades, e outros que o odiarão pelos mesmíssimos motivos.
Acho que a pergunta mais válida seria “o que define boa literatura para mim”?
A diferença entre uma pergunta e outra é que meu gosto por essa ou aquela história diz tanto sobre mim quanto sobre qual enredo escolho para leitura, e, consequentemente, quem escolho ler.
O ato da leitura é, naturalmente, um encontro de sujeitos – quem escuta e quem conta -, e entre esses, deve existir comunhão, partilha. Como em qualquer encontro, há a possibilidade de sucesso e de fracasso, e independente do resultado, a troca deixa vestígios, contribuições, pois é nesse embate que eu toco o outro, o outro me toca.
Digo embate porque não acredito em encontros de sujeitos que, eventualmente, não resultem em conflito, e acredito também que nada se transforma, para bem ou para mal, sem que haja esse conflito. O conflito é um motor, é fenômeno que demanda mudança, pois o que não muda, gasta, quebra, some.
Nos últimos meses, a cena literária amazonense tem passado por um conflito, e me arrisco a dizer que é uma das histórias mais velhas do mundo. Entre seus muitos episódios, um dos autores mais influentes do estado cita que o Clube da Madrugada – movimento artístico de destaque entre 1950 e 1960 – ainda é a principal referência de qualidade literária no Amazonas, seguido da declaração de uma colega de profissão na qual afirma que o crescente número de publicações independentes – possibilitadas pela internet ou pelos editais de fomento à cultura – valoriza quantidade acima de qualidade, o que comprometeria a integridade artística da literatura local.
Em contraposição, vários representantes do segmento da Literatura Marginal denunciaram tais posicionamentos como elitistas e excludentes. Se não fossem justamente a internet e os editais de fomento, é provável que vários desses artistas não encontrassem nos meios de publicação tradicionais espaço para que suas narrativas chegassem às mãos de leitores interessados em ouvir o que têm a contar.
Não vejo como me posicionar nessa discussão – uma vez que também sou escritor – sem deixar aqui um pouco da minha experiência. Entrei no curso de Letras em 2012 porque queria ser escritor, e achei que seria um bom lugar para começar. Posteriormente, já com livros publicados, fiz Mestrado em Estudos Literários e continuo tanto publicando quanto engajado em minha formação. No entanto, não foi a formação acadêmica que me fez escritor.
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Foram os filmes que assistia com meu pai quando ele chegava do trabalho, após passar o dia dirigindo um ônibus municipal. Foram as canções e histórias que ouvia de minha mãe, os causos sobrenaturais que ouvia de meu avô. Foram os desenhos animados de sábado, os videogames que jogava apenas quando ia na casa dos meus primos mais abastados. Foi toda arte que consumi, seja em casa, na rua ou na escola.
E com certeza não foi a academia que me permitiu publicar, nem o convite miraculoso de uma editora interessada no que um menino de 18 anos tem a dizer. Em Manaus, não funciona a ideia de que, se você tem talento, será visto (acho que em nenhum lugar do mundo). Não há muitos caminhos para a publicação tradicional aqui, e já ouvi de um certo escritor renomado – hoje defunto – que só é válido publicar se você for selecionado por uma editora de São Paulo.
Filho de pai motorista e mãe autônoma, não sobrava muito dinheiro para ir a São Paulo tentar a vida como escritor. Nenhum livro que lancei foi publicado de outra forma senão por financiamento coletivo ou editais de fomento à cultura. Sem esses caminhos alternativos, eu não teria publicado meu primeiro livro, há uma década, tampouco estaria me preparando para publicar o sexto.
Em uma cidade como Manaus, que não integra o eixo econômico – e, consequentemente, cultural – do país, quem sente a vontade violenta de contar histórias não pode se dar ao luxo de esperar ser notado pelos olhos de cima, nem dispor de algumas dezenas de milhares de reais para ter a satisfação de ter seu nome na capa de um livro. Nem todos calhamos de nascer com o sobrenome certo.
Na cultura, é natural haver conflito: de um lado, movimentos artísticos bem estabelecidos, confortáveis em publicar quando a inspiração bate e o dinheiro não falta, e, de outro, vanguardas que desassossegam quem esquece o quanto é difícil ser artista no Brasil. Como diz Regina Dalcastagnè, tais vanguardas causam ruído, barulho, dissonância que, embora vistas superficialmente como manifestações caóticas, somam à diversidade de vozes que escapam ao gargalo dos meios tradicionais de publicação.
Com todo o respeito ao Clube da Madrugada, mas as pessoas não pararam de viver em 1960. Se vivem, logo escrevem.
E sem precisar de permissão.
Sobre o autor
Jan Santos é autor de contos e novelas, especialmente do gênero Fantasia. Mestre em Literatura pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e com graduações em Língua Portuguesa e Inglesa, é um dos membros fundadores do Coletivo Visagem de Escritores e Ilustradores de Fantasia e Ficção Científica, além de vencedor de duas edições dos prêmios Manaus de Conexões Culturais (2017-2019) e Edital Thiago de Mello (2022).
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