Interpretação de texto em crise

Uma leitura fanática é uma leitura soberba, que parte do princípio que tudo que é produzido no mundo é uma zombaria, um ataque a suas crenças e atitudes.

Por Jan Santos – jan.fne@gmail.com

No dia 25 de julho, comemora-se o Dia do Escritor no Brasil, data instaurada em função da realização do I Festival do Escritor Brasileiro, em 1960, pela União Brasileira de Escritores (UNB). O evento teve a proposta de celebrar a produção dos talentos do nosso país, bem como reconhecer as dificuldades do ofício, especialmente a luta incansável dos profissionais da Literatura (escritores, bibliotecários, professores, críticos e etc) para que a prática da leitura se torne também uma paixão nacional.

64 anos depois, a luta continua exatamente a mesma, e um ocorrido na Abertura dos Jogos Olímpicos de 2024 aponta que talvez esteja até mais difícil.

A última ceia, por Leonardo Da Vinci, artista cuja sexualidade também suscita debates

Durante o evento, um grupo de artistas queer, principalmente drag queens, fizeram uma representação do que, à primeira vista, parecia uma releitura de “A Última Ceia”, de Leonardo Da Vinci. Após uma série de críticas violentas (palavras como “abominação”, “lixo”, “blasfêmia” e “heresia” foram utilizadas por vários veículos de mídia de setores conservadores, em especial, religiosos), a organização do evento afirmou que a referência não se tratava da obra de Da Vinci, mas de uma pintura feita pelo holandês Jan Van Bijlert, “A festa dos deuses”, que como o próprio nome deixa claro, nada tem a ver com a doutrina cristã.

A festa dos deuses, de Jan van Bijlert

O interessante foi o quão rápido os setores conservadores foram homofóbicos sem a menor hesitação. Não que isso seja novidade: enquanto LGBT, estou familiarizado com xingamentos do tipo (meus textos já foram chamados de “macabros” e “corruptos” por um pastor famoso de Manaus), mas enquanto escritor, ainda me choco com a falta de interesse em entender aquilo que se vê em programas, filmes, livros e séries.

Caso esteja se perguntando, por serem construções que carregam leituras possíveis, imagens também são textos, e como tal, sujeitas a interpretação. Imagino que todo escritor com o mínimo de bom senso, menos de uma semana após ter seu dia nacional comemorado e recebido vários “parabéns” de leitores e familiares, deve ter se decepcionado com a situação, porque isso não é uma reação lógica, de quem entende o que viu para depois criticar.

Uma pessoa racional não reage com violência, com acusação, com tamanho desprezo ao se referir a outro ser humano. O que vimos foi uma reação fanática.

Uma leitura fanática é uma leitura soberba, que parte do princípio que tudo que é produzido no mundo é uma zombaria, um ataque a suas crenças e atitudes. É uma leitura que esquece que arrogância é o pecado original.

Não, nem tudo é uma crítica pra cima dos opressores. Às vezes, é válido celebrar uma parte significativa da sociedade que não costuma ocupar o palco principal.

Costumamos dizer que “os jovens não sabem interpretar, os jovens não querem saber de ler”, mas nós como adultos, interpretamos? Lemos? Damos o exemplo? Ou apenas acreditamos nas leituras que nos chegam prontas nas redes sociais? Será o jovem o responsável pela crise de interpretação no país? 

Se não lemos, não temos referência. Não sabemos sequer diferenciar um quadro do outro, ou um deus do outro, se somos ignorantes a ponto de achar que tudo é um ataque. A violência que surgiu após a releitura do quadro de Van Bijlert deixou bem claro que as pessoas não procuram conhecer o que criticam.

Não é apenas uma questão de representatividade, de reconhecer a existência de pessoas reais. Quando deputados e pastores influentes compartilham esse tipo de leitura rasa e sem referência, colocam em risco o emprego, a saúde, o bem-estar e a integridade de uma população que, independente do que digam, existe e integra a sociedade em múltiplos níveis e contribuem, como qualquer cidadão, com a economia, a educação e a cultura do país.

Modelo e atriz Viviany Beleboni em ato contra a homofobia na 19ª Parada do Orgulho LGBT na Avenida Paulista, em 2015 (Foto: Reuters/Joao Castellano)

Tal situação me levou de volta a outro exemplo de interpretação rasa. Em 2015, durante a 19ª Parada do Orgulho LGBT, a modelo Viviany Beleboni protagonizou um momento célebre na história do movimento: crucificada, ela fez uma releitura da Paixão de Cristo. Imediatamente, Beleboni recebeu um número imenso de ameaças de morte após sua manifestação. Considerando que o Brasil é o país que mais mata trans e travestis no mundo, é mais que óbvio o sentido que a modelo quis transmitir: associar a perseguição, o flagelo e o preconceito que sua comunidade sofre com o sofrimento pelo qual Cristo passou.

Ao lembrarmos de casos de pessoas trans assassinadas de formas brutais em qualquer manchete de jornal (a pernambucana Roberta da Silva, a carioca Matheusa Pascarelli e a cearense Keron Ravach, que tinha apenas 13 anos quando foi assassinada), não é preciso muito para interpretar a intenção de Beleboni ao retratar a Paixão de Cristo com um corpo trans. Mesmo assim, sua representação foi vista como “chacota, blasfêmia e abominação”. O ato da modelo chocou mais do que a brutalidade de tais assassinatos.

Curiosamente, as releituras abaixo não suscitaram a mesma revolta nos movimentos conservadores quando foram feitas:

Por que apenas quando sujeitos LGBTQIA+ produzem seus textos, constroem suas imagens, pintam suas vivências, é que tais movimentos se movimentam? Por que é tão abominável que pessoas dessa comunidade encontrem espaços na arte para que expressem sua realidade? Por que é um pecado que sejam celebradas em espaços de destaque como as Olimpíadas? Mesmo que fosse uma referência direta à Última Ceia, não é o simbolismo do momento uma referência à confraternização universal, objetivo principal do evento?

Ler e interpretar são também sinais de uma sociedade saudável, e o fato de setores conservadores estarem tão dispostos a desumanizar, violentar e desprezar uma parte da sociedade significa que tem gente nesse país que não prestou muita atenção nas aulas de arte e literatura.

Realmente, o brasileiro precisa estudar mais.

Sobre o autor

Jan Santos é autor de contos e novelas, especialmente do gênero Fantasia. Mestre em Literatura pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e com graduações em Língua Portuguesa e Inglesa, é um dos membros fundadores do Coletivo Visagem de Escritores e Ilustradores de Fantasia e Ficção Científica, além de vencedor de duas edições dos prêmios Manaus de Conexões Culturais (2017-2019) e Edital Thiago de Mello (2022).

*O conteúdo é de responsabilidade do colunista

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