Bem da verdade, os povos indígenas não precisariam da literatura escrita para registrar seus conhecimentos se nós não enchêssemos sua tradição oral de ruídos, barulhos que agridem uma tradição milenar e a forçam a se preservar no papel.
Ao buscar literatura indígena no Google, um dos primeiros resultados certamente será o livro ‘Nós: uma antologia de literatura indígena’, organizado por Daniel Munduruku, que reúne o trabalho de vários autores representantes de povos indígenas diversos. Adquiri a obra durante a Feira de Livros do SESC de 2019, pouco antes da pandemia, ocasião em que tive a honra de mediar uma mesa redonda com os autores Ely Macuxi (uma das perdas irreparáveis causadas pela Covid) e o próprio Daniel Munduruku.
Fiquei bastante mexido com aquela mesa, ao ponto de devorar “Nós” no dia seguinte ao evento. Ao fazê-lo, percebi que não bastava ir ao Google e pesquisar sobre “literatura indígena”, tinha que me perguntar também que indígena é esse que nós, não-indígenas – que aqui me referirei de forma generalizada como “brancos” – tanto queremos saber sobre. Porque há tantas formas de “ser indígena” quanto há povos indígenas no território brasileiro. Na verdade, há bem mais que isso, uma vez que nenhuma pessoa indígena é igual a outra.
Não haveria justiça em falar desse livro, “Nós”, enquanto coletânea, uma vez que cada um de seus autores revela as crenças particulares de seus respectivos povos – transformadas em contos pela ficção de quem as pôs no papel. Entre esses nomes, temos Yaguarê Yamã, dos Maraguá, povo originário do interior de Nova Olinda do Norte, que habita a região às margens do rio Abacaxis.
O texto de Yamã, “Guaraguá, o peixe-boi dos Maraguá”, foi uma das inspirações para que eu escrevesse “O livro do rio”, além de um grande portão para que eu conhecesse não apenas os autores de “Nós”, mas também as muitas (e eu quero dizer MUITAS mesmo) obras do autor, que se dedicou não apenas a preservar o conhecimento de seu povo por meio da ficção, mas a confrontar a ignorância do homem branco com uma referência robusta para que seu povo fosse conhecido.
Bem da verdade, os povos indígenas não precisariam da literatura escrita para registrar seus conhecimentos se nós não enchêssemos sua tradição oral de ruídos, barulhos que agridem uma tradição milenar e a forçam a se preservar no papel. Na busca para que os entendamos melhor é que os indígenas se submetem à palavra escrita em língua portuguesa, não porque dela precisam, mas porque nós temos memória curta, daí a necessidade de anotarmos tudo.
Em um esforço para que sejam entendidas, pessoas como Yamã se dignam a falar em uma linguagem que somos capazes de entender, e esse é o ponto da coluna deste mês. Como vários autores indígenas, Yamã não se limita a compor narrativas, mas também a habilitar o leitor não-indígena a compreendê-lo, convidando-o para um verdadeiro ato de ação de graças (não aquele romantizado pelos norte-americanos).
Por vezes referido como autor de literatura infantojuvenil, seus textos servem a todos os públicos, uma vez que são bastante didáticos, ideais tanto para a criança curiosa quanto para o adulto colonizado. Obras como “Murugawa – mitos, contos e fábulas do povo Maraguá” são um exemplo de como o autor se propõe a ilustrar a cultura de seu povo ao branco. Professor por formação, sua didática manifesta-se em forma de literatura, e por vezes deixa transparente a diferença entre os elementos da cultura Maraguá e da Saterê-Maué, que compõem sua identidade.
Palavras do idioma maraguá se mesclam em um texto escrito em língua portuguesa, e seja pelo contexto ou pelos glossários e notas de rodapé, é impossível ao leitor não sentir que está pisando em um território híbrido, um entrelugar criado por Yamã para que indígenas e brancos possam compartilhar saberes, mas não de forma gratuita. As histórias do povo Maraguá, a forma como encaram o universo e sua relação com a natureza servem de exemplo sobre como os seres humanos podem manter uma relação de respeito com o mundo, dissolvendo a falácia de que o ser humano é um câncer para o planeta. Somos, assim, encarregados de responsabilidade por tais leituras.
A plurilinguagem desses textos compreende ainda uma terceira dimensão: as ilustrações. Longe de serem meras adaptações do texto para a imagem, as ilustrações em uma obra indígena frequentemente são traduções de sua compreensão de mundo, em grafismos elaborados que também guardam significados. São, em si mesmas, portadoras de sabedoria, sem as quais o texto não será entendido de forma plena.
Na verdade, o dar-se a conhecer por meio da literatura é uma proposta conjunta de autores Maraguá que compreende também nomes como Lia Minapoty, Roni Guará, Elias Yaguakãg e Uziel Guaynê, que transcrevem a identidade desse povo para linhas compreensíveis às sociedades não-indígenas. Em histórias cheias de avisos sobre como o ser humano deve se relacionar com a terra que os sustenta, conhecemos um universo de narrativas onde viver é possível, de forma que não nos tornemos uma ameaça inevitável ao próprio ar que respiramos.
O esforço desses autores é por um projeto de saber coletivo, uma vez que suas histórias são suas, mas também do povo, que mutuamente constroem uns aos outros em texto e imagem por meio dessa troca, e ao remontá-las em língua portuguesa, também oferecem aos brancos a oportunidade de participar de um banquete diferente, no qual a natureza não é apenas um prato a ser devorado.
No entanto, essa oferta nos cobra maior participação na luta pelos direitos indígenas – que, em suma, são os direitos da própria natureza –, pois, donos de formas de produção de linguagem próprias, os indígenas, sejam Maraguá ou não, deixam claras as suas demandas e dores, e não há mais como os brancos dizerem que as desconhecem. “Eu não sabia” não é mais desculpa, é só o que dizemos para não nos admitirmos cúmplices do genocídio incessante contra os povos indígenas. É esse o tipo de clareza que nos traz o Homem-Onça e suas histórias.
Quer conhecer mais sobre o trabalho de Yamã? O autor possui uma coleção bem extensa publicada por editoras de todo o Brasil disponível em sites como a Amazon, e compartilha frequentemente conteúdos educativos sobre a cultura Maraguá na conta @yaguareyama_escritor, via Instagram.
Sobre o autor
Jan Santos é autor de contos e novelas, especialmente do gênero Fantasia. Mestre em Literatura pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e com graduações em Língua Portuguesa e Inglesa, é um dos membros fundadores do Coletivo Visagem de Escritores e Ilustradores de Fantasia e Ficção Científica, além de vencedor de duas edições dos prêmios Manaus de Conexões Culturais (2017-2019) e Edital Thiago de Mello (2022).
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