O Réu Jesus teve um processo justo?

Mesmo longe da religião e da teologia, o personagem Jesus desperta atenção dos estudos jurídicos em sua posição como réu.

Mesmo longe da religião e da teologia, o personagem Jesus desperta atenção dos estudos jurídicos em sua posição como réu. Diante da acusação e do julgamento pela lei dos hebreus e pela lei romana, é possível dizer que houve um processo justo contra Jesus?[1]

Foto: pixabay

O julgamento perante o Sinédrio e a falta de provas 

Após sua prisão, Jesus foi levado ao Sinédrio, o órgão judicial supremo de Jerusalém, formado por 71 membros[2]. Jesus foi interrogado sobre seus discípulos e seus ensinamentos. Jesus respondeu “Por que me interrogas? Pergunta aos que ouviram o que falei; eles sabem o que eu disse” (João 18, 19-24). Jesus, então, exigiu testemunhas e provas contra si.

Houve vários falsos testemunhos no Sinédrio. Essa informação é juridicamente relevante na medida em que, mesmo naquele tempo, provas testemunhais frágeis e contraditórias não seriam admitidas[3]. Além disso, nem todos poderiam testemunhar: mulheres, crianças, idosos, escravos e surdos, por exemplo, não podiam prestar depoimentos naqueles tempos.

No entanto, duas testemunhas foram apresentadas e confirmaram que Jesus havia dito que poderia destruir o Templo e construi-lo de novo em três dias. É curioso notar que o evangelho traz o número de 2 testemunhas, pois a lei deuteronômica dizia que, sob o depoimento de “duas ou três testemunhas”, será o réu condenado à morte (Dt 17, 6).

Mesmo com provas contraditórias da acusação, Jesus foi condenado à morte pelo Sinédrio (Mateus 26, 59-62; Marcos 14, 56-64) e levado até Pilatos.

O interrogatório perante Pilatos e o “declínio de competência”

Como governador da Judeia em nome do Imperador romano Tibério, Pôncio Pilatos recebeu o preso Jesus para ser executado e já iniciou perguntando sobre as acusações e as provas contra Jesus, mas os sacerdotes responderam que “se não fosse um malfeitor, não o teríamos entregue a ti” (João 18, 28-30).

Nos tempos do direito romano, sabia-se que, sem uma acusação determinada, o processo não poderia ter início[4]. Por isso, ao final do interrogatório, Pilatos foi ao encontro deles e declarou que não havia encontrado provas para condenar Jesus. Na verdade, há indícios de que Pilatos sabia que Jesus era inocente e sua prisão havia sido motivada por inveja dos sacerdotes (Mateus, 27, 18-19). Quando Pilatos  percebeu que não havia acusação nem provas contra Jesus, disse aos sacerdotes para julgá-lo de acordo com a lei dos hebreus.

Aí acontece uma reviravolta jurídica: uma inovação na acusação. O réu foi surpreendentemente acusado de algo que não apareceu na investigação preliminar. No Sinédrio, Jesus foi acusado de blasfêmia (de destruir o Templo e de se dizer o Cristo); perante Pilatos, Jesus foi acusado também de proibir seus seguidores de pagarem tributos a Roma (Lucas 23, 1-2). Pilatos estava diante agora de uma acusação de crime de lesa-majestade contra o povo romano[5]. Não poderia fugir desse julgamento. No entanto, não se tem notícia de que o governador romano tenha ouvido como testemunha algum de seus cobradores de impostos[6].

Em determinado momento, Pilatos perguntou se Jesus era galileu. Como a resposta foi afirmativa, houve aí o que se chama juridicamente de “declínio de competência”. Ou seja: quando um magistrado entende que não tem atribuições para julgar a causa por algum motivo (função, território, matéria etc.). O julgamento de Jesus foi, então, “declinado” para Herodes Antipas (Lucas 23, 6-7).

Foto: Unsplash

O julgamento de absolvição perante Herodes

Perante Herodes Antipas da Galileia, Jesus ouviu as mesmas acusações dos sumos sacerdotes, mas nada respondeu, exercendo seu direito ao silêncio. Herodes tratou o réu Jesus com desprezo, zombou dele e, então, mandou-o de volta a Pilatos, porque não encontrou provas contra Jesus (Lucas 23, 11-15).

Estudos sugerem que a narrativa envolvendo Herodes Antipas reforça a falta de provas e a inocência de Jesus[7].

O não-julgamento de Pilatos

Jesus foi levado de volta a Pilatos. Seguindo o costume da Páscoa, Pilatos pediu ao povo para escolher a liberação de um dos presos: Jesus ou Barrabás. Como se percebe, trata-se do que hoje chamamos juridicamente de “anistia”. Pilatos queria “perdoar” os “crimes” de Jesus. No entanto, como o povo escolheu o assaltante e homicida Barrabás, Jesus foi sancionado com o açoite.

Após a pena corporal, Jesus foi de novo apresentado aos hebreus – já agora com a coroa de espinhos e o manto de púrpura. Mais uma vez Pilatos diz que não encontrava nele “nenhum motivo de condenação” (João 19, 6). Surge, então, a figura do juiz que “lava as mãos” do sangue do réu inocente.

Aqui, deveria ter prevalecido a força do juiz romano. Se não havia provas, Jesus deveria ter sido inocentado por Pilatos ou o juiz poderia ter usado da conhecida fórmula romana non liquet[8].

No entanto, após insistência do povo, Pilatos sentou-se no tribunal e resolveu entregar Jesus à crucificação (João 19, 13-16; Marcos 15, 14-15). Mais especificamente: Pilatos “decidiu que fosse feito o que eles pediam” (Lucas 23, 24-25). O juiz rendeu-se à vontade da multidão.

O jurista italiano Salvatore Satta dizia que o objetivo do processo não deve ser a justiça nem a busca da verdade. Se isso fosse verdadeiro, diz Satta, seria absolutamente incompreensível uma sentença injusta. Satta, então, conclui que “Jesus Cristo não quis ser morto sem as formas de justiça, porque é bem mais ignominioso morrer através de um julgamento do que por uma revolta injusta”[9].

O filósofo Giorgio Agamben prefere pensar que Pilatos procurou insistentemente evitar proferir um veredito contra Jesus. Não há julgamento injusto nesse caso, pois não há uma sentença julgando o réu Jesus. Há, na verdade, uma entrega à cruz. Diz Agamben que “o juiz, ao final, não pronunciou sua sentença, simplesmente entregou o acusado ao sinédrio e aos carrascos”. É um processo sem julgamento; uma pena sem decisão. O que houve foi um “simulacro de processo”[10].

É preciso refletir sobre isso. O momento mais decisivo do cristianismo desenvolveu-se na forma de um processo: contra um réu afastado de um julgamento justo, desprezado e hostilizado pelos juízes, preso e torturado pelos guardas e, ao final, condenado – ou entregue à condenação -por um juiz sem provas, para agradar a multidão.

[1] Tratou-se aqui de apenas alguns dos elementos jurídicos, uma vez que há inúmeros erros do julgamento, como os indicados em Walter M. Chandler, The trial of Jesus from a lawyer´s standpoint: the hebrew trial, v. 1, Newstead, Emerco, 2013. [2] Robert McFarland, Jesus´ trials: legal analysis of the six separate trials of Jesus Christ, R. R. Donnelley, Crawfordsville, 2003, formato Kindle. [3] Robert McFarland, ob. cit[4] Giorgio Agamben, Pilatos e Jesus, Florianópolis, Editora UFSC, 2014. [5] Giorgio Agamben, ob. cit.[6] Klaus Rosen, Roma y los judíos en el proceso de Jesús (c. 30 D.C), Los grandes procesos de la historia, coordenação de Alexander Demandt, tradução de Enrique Gavilán, Barcelona, Crítica, 2000. [7] Adam Kubis, Jesus´ trial before Herod Antipas, Resorvia Sacra, n. 21, 2014. [8] Giorgio Agamben, ob. cit.[9] Salvatore Satta, “Ilmisterodelprocesso”,conferênciaministradanaUniversidadedeCatania, naItália, em 04/04/1949. [1] Giorgio Agamben, ob. cit.

*O conteúdo do texto é de inteira responsabilidade do(a) autor(a) e não reflete, necessariamente, a posição do Portal Amazônia.

Vitor Fonsêca é Doutor (PUC/SP), Professor Universitário e Promotor de Justiça (AM) – diarioprocessual.com


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