O pioneiro no combate ao racismo científico na Amazônia

João do Monte era um pobre poeta aventureiro e se dizia “mestiço”.

O poeta João do Monte. Foto: Acervo pessoal

Por Júlio Olivar – julioolivar@hotmail.com

Filho de uma tradicional família cearense, João do Monte escrevia poemas em jornais de Fortaleza e de Sobral desde 1910, quando ainda era adolescente. À parte dos versos, era um polemista e se dizia “mestiço”. Uma raridade na sociedade vigente na época, com espaços reduzidos a pessoas que não fossem brancas. A escravidão havia terminado, oficialmente, há pouco mais de duas décadas.

Sua inquietude era explícita, pois embora tivesse facilidades para conseguir empregos em jornais de prestígio e atuar como professor, ele não parava em lugar algum, e deixava dívidas de empréstimos pelos caminhos que percorria.

Parecia estar em busca de algo que nem ele mesmo sabia o que era, com rebeldia e algum tormento psicológico.

Em Porto Velho – uma cidade nova, fundada em 1914 –, onde viveu por quase três anos, até 1920, combatia, ao lado do também poeta Mendonça Lima, que era médico e dono de cinema no povoado de Abunã, as teses de eugenia defendidas por intelectuais locais.

As ideias que Monte rejeitava tinham raízes no século XIX e foram usadas para justificar a colonização, a escravidão e a exploração de povos não europeus. No Brasil, o racismo científico foi uma ferramenta utilizada para legitimar políticas de branqueamento e marginalizar a população negra, mesmo após a abolição da escravidão.

O racista mais veemente era o presidente da Assembleia Legislativa do Amazonas, Alfredo da Mata (1870/1954), médico baiano morador em Manaus, onde chegou como funcionário da empresa de navegação estatal Lloyd Brasileiro. O político tinha muita credibilidade como médico e publicou livros importantes neste segmento. Porém, era defensor de ideais de supremacia branca. E além de deputado estadual e federal, foi eleito ao Senado em 1935 bradando esse tema potencializado, posteriormente, por Adolph Hitler.

No final do século XIX e início do século XX, o governo dos Estados Unidos adotou medidas legislativas em vários estados como meio de promover o “melhoramento racial”. O parlamentar amazonense Alfredo da Mata elogiou: “O povo norte-americano, um povo de técnicos sempre ávidos por progresso material e social, impregnado de ciência desde as escolas até a imprensa e conhecedor de métodos biológicos de cultura e criação, é o povo que habita a terra prometida da eugenia. Não pormenorizarei, mas esta ciência faz parte dos programas escolares e universitários dos Estados Unidos.”

O político Alfredo da Mata. Foto: Acervo pessoal

Formado no Rio de Janeiro, o advogado Raif Costa da Cunha Lima atuava em Porto Velho, onde foi versais entre 1920 e 1923 – e mais tarde foi promotor de justiça no Acre, nas décadas 1920,30 e 40 – comungava da “teoria científica da eugenia” propagada por Alfredo da Mata, junto com “mestres” como o capitão Alencarliense de Castro, militar que integrou a Comissão Rondon e que àquela altura vivia em Porto Velho. Alencaliense era engenheiro e o autor do monumento dos cem anos da Independência do Brasil, presente até hoje no centro histórico da capital rondoniense.

Raif se ofendeu, e deixou isso explícito e textualmente dito, por não ter sido chamado de “doutor” pelo poeta João do Monte em um artigo no jornal “Alto Madeira”, criticando-o pelas posições racistas.

O advogado tratou de desqualifiá-lo academicamente – “João é dono de um cérebro simples”, assim o definiu – e pela “falta de profundidade de seus argumentos” a favor da mestiçagem, “além dos incontáveis erros ortográficos que comete na escrita sofrível ao defender o que não sabe”.

A eugenia é, em síntese, a hipótese da reprodução de indivíduos com características consideradas superiores ou desejáveis, para uma purificação “natural” da raça brasileira, por meio do embranquecimento da população.

João do Monte era atacado pelos detratores que, ao revidá-lo com argumentos, apontavam erros de português em sua escrita, sem entrar no mérito de suas teorias. Ele se atinha a contestar os que defendiam o racismo e deixava claro: “Nestes últimos quatro séculos, onde mais intenso se tornou o intercâmbio espiritual e material dos povos, a terra brasileira, recebendo no seu seio o contingente de dois povos diferenciados em cultura, para cruzarem-se entre si, juntamente com a população autóctone, os indígenas americanos, vem sedimentando os alicerces de uma nacionalidade distinta”.

E mais, João continuava: “Ninguém poderá esquecer a série imensa de vultos, resultante da mestiçagem brasileira, cuja capacidade de ação é poderosa e definida nas mais claras manifestações do pensamento. Luiz Gama, Cruz e Sousa, Natividade Saldanha, Silva Alvarenga, André Rebouças, Lírio de Castro, José do Patrocínio e tantos outros, mestiços de brancos com negros, atestam a sua inconcussa superioridade. Carlos Gomes, Franklin Távora, Romualdo de Seixas, Diogo Feijó, João Lisboa, para não falar em outros, mestiços de brancos com indígenas”.

O crítico de literatura João da Ribeira, do jornal “O Imparcial” de Manaus, descreveu o autor cearense como “um raro littéraire”. Como poeta, João do Monte deixou vários versos memoráveis.

Quem foi

Em 1914, João do Monte fundou seu próprio jornal, o pequeno “Resedá”, em Camocim, no litoral do Ceará. No entanto, o semanário foi logo fechado. Em 1916, o jovem talentoso passou a trabalhar como redator no “Diário do Estado”, em Fortaleza, e, posteriormente, como repórter no “Jornal do Commercio”, em Manaus, para onde se mudou naquele mesmo ano.

Ainda em 1916, ele partiu para o Acre, onde atuou como revisor da Imprensa Oficial do Estado. Pouco tempo depois, foi frequentemente mencionado como assistente e colaborador do jornal “Alto Madeira”, em Porto Velho, entre 1917 e 1920.

Com tanta movimentação, fica claro que ele era um aventureiro, então com cerca de 25 anos, quanto muito.

O poeta João do Monte. Foto: Acervo pessoal

Foi uma figura emblemática da boemia. Conhecido por suas risadas debochadas, era presença constante nas cafeterias e no palco do teatrinho do Cine Phênix, onde declamava poemas junto a outros agitadores culturais da cena de Porto Velho, especialmente seu amigo e chefe no jornal “Alto Madeira”, João Soares Braga, o Português.

Monte também atuou como ator na comédia “Dois Estudantes no Prego”. Segundo a crítica publicada no jornal, ele “apresentou perfeita dicção e muito chiste”.

Infelizmente, pouco mais se sabe sobre ele, exceto que era constantemente referido como “amigo de todos”, “festejado poeta”, “o mais engraçado” e promotor de “seratas”, segundo anunciava a imprensa naqueles tempos de “Belle Époque” tropical na Amazônia. Ele gostava de dançar e curtir a vida de maneira desprendida e despretensiosa, e isso é o que mais se dizia.

Era morador do bairro Favela, reduto de operários e pessoas pobres, e dava aulas de alfabetização na Escola Municipal “Sátiro Dias”. Em 1919, criou com Anthistenes Nogueira Pinto – tabelião e também seu colega professor na escola Sátiro – o colégio Externato Madeirense, instalado à avenida Osório. Este educandário teve vida efêmera, pois em 1920 Monte mudou-se para Fortaleza (CE), sua terra natal.

Em 9 de junho de 1921 o jornal “Alto Madeira” noticiou a morte, sem falar da idade e das causas:

“JOÃO DO MONTE – Pereceu a bordo de um dos vapores do Lloyd o jovem poeta João do Monte, nome muito conhecido aqui, onde passou alguns anos de sua vida de boêmio, de eterno despreocupado com as incógnitas do futuro.
Era um moço que cultivava as musas com inspiração, mas que, nada deixou de duradouro, devido a sua organização infensa ao estudo acérrido, aproveitoso elemento indispensável ao bom êxito nas lutas da inteligência.
Olhando o mundo pelo lado cômico, morreu poeta que ria de tudo e de todos. Foi assim a sua existência, aproveitando a expressão de Forjaz Sampaio, ‘uma eterna corda de risos’.”

Meses depois, um desmentido: ele estaria vivo e trabalhando em um jornal no Rio de Janeiro. E o mistério continuou. No entanto, em 1928, o jornal “O Ceará” publicou, em 25 de dezembro, o poema “Natal”, referindo-se ao autor João do Monte como “saudoso e malogrado poeta”; foi uma homenagem póstuma de uma vida curta e atordoada.

Sobre o autor

Júlio Olivar é jornalista e escritor, mora em Rondônia, tem livros publicados nos campos da biografia, história e poesia. É membro da Academia Rondoniense de Letras. Apaixonado pela Amazônia e pela memória nacional.

*O conteúdo é de responsabilidade do colunista

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