​Hoje faz 100 anos a morte de Lima Barreto, o primeiro “cancelado”

Escritor enfrentou o racismo e morreu marginalizado.

Hino da juventude na década de 1980, “Que país é este?” é título de uma canção do poeta Renato Russo. Antes, porém, em 1976, o presidente da Arena, Francelino Pereira, havia cunhado a expressão, com sentido antagônico ao do artista: deveríamos nos ocupar de acreditar na versão oficial – no caso, a promessa do presidente do Brasil, Ernesto Geisel, de que o país passaria a ter eleição direta para governador; não cumpriu.

A fala de Francelino (en)cantada por Renato Russo vale para os dois lados da moeda. Que país é este, afinal? Questionam os conservadores que desejam a disciplina e a preservação do status quo arraigados em valores como a família, a moral, os “bons costumes”, o nacionalismo ufanista… a antiga encíclica da indulgência. Por outro lado, “Que pais é este?” pode ser a indagação do inconformismo e da revolta e virar exclamação. “Que droga de país é este”! Parafraseando Lima Barreto, um notório contestador: “O Brasil não tem povo, apenas público”. Pensamento que ele externou no ano de sua morte, 1922, em artigo na revista “Careta”, e que está atual um século depois.

Muito oportuna a lembrança de Barreto, cujo centenário de morte é hoje: 1º de novembro, às vésperas de finados. A vida espreitando a morte; “de véspera ninguém morre” (adágio).

Acima de tudo, o escritor foi um crente! E morreu por isso. Acreditou demais, subversivamente, esperneando contra a crueldade, fincado nos arrabaldes da vida carioca que já se notabilizava como a terra da corrupção, da concentração de renda, das milícias, das injustiças, os paradoxos da cidade maravilhosa que se apresenta nos cartões postais e para famílias abastadas que a desfrutam.

O túmulo do escritor no Rio de Janeiro. Foto: Reprodução

Lima Barreto tentou, sem êxito, ser parte da Academia Brasileira de Letras. A bem da verdade, queria mais que vestir o fardão: ser aceito era a questão. É difícil – sim, falo no presente – para um negro furar o cerco-bloqueio. Sua obra vigorou no universo underground; periódicos populares e anarquistas. Triste fim daquele que ficou maior post mortem. Porque a morte perdoa a todos, até quem não precisa ou nem merece perdão algum.

Decerto, o escritor de semblante carregado foi muito de Renato Russo, embora tenham vivido em épocas e realidades diferentes. Morreram cedo demais: aos 41 e 36, respectivamente, ambos no Rio. Sofreram envoltos nos questionamentos acerca da loucura que consiste em ser brasileiro; claro, brasileiro que não se permite ser apenas parte de um público, mas sujeito da história. E ambos recorreram ao ópio para atenuar a dor de quem sente. Terminaram “loucos”, pois “a loucura é o sol que não deixa o juízo apodrecer” (Santo Agostinho).

Neto paterno de uma escravizada, Afonso Henriques de Lima Barreto não foi diferente dos meninos do seu tempo, não muito livre porque a cor não o permitia. Nasceu quando ainda vigorava a escravidão. A lei. Ah, a lei! Lei do mais forte. E para que existe o Congresso que faz a lei? Para proteger os “direitos” da aristocracia. Para isso foi criado o legislativo no País: proteger quem já tinha/tem tudo.

Menino-prodígio com sangues africano e português. Dominado e dominador em simbiose nas veias. Ele admirava a família imperial e dela se confessava súdito, mas contestava as limitações do mundo. Foi filho de professora [morta quando ele tinha seis anos], aprendeu com o pai o ofício de tipógrafo, universo que o impeliu à intenção da escrita; e ele passou a escrever “sem torturamento”, como definiu Monteiro Lobato, querendo dizer que a pena do rapaz deslizava com fluência, leveza e vigor. Talento não se explica.

Sob o farfalhar monótono e sonolento da gráfica, o menino Lima Barreto fez-se escritor. Imaginário, a princípio. Tal qual poetou o inglês John Betjeman: “A infância é medida pelos sons, aromas e cenas antes de surgir a hora sombria da razão”. Fase adulta é o enfrentamento da realidade que deprime e reforma. Órfão de mãe, o menino teve que ajudar a criar e cuidar dos quatro irmãos. Viveu no limiar da pobreza, embora não lhe faltasse o que de comer. O que não quer dizer muita coisa. Vivia entre a realidade cortante e o pensamento elevado. Incongruências. Era monarquista o pobre rapaz, aficionado pela benevolente Princesa Isabel, porque viu na nascente República todos os vícios da elite encastelada, do jeito que sempre foi nos brasis do Império e da Colônia e entrou século XX afora. E ei-lo aqui em 2022!

O desajustado, o “homem de cor” e submerso aos vícios das alcovas. Assim foi visto o gênio incompreendido colocado em hospícios que eram campos de concentração para calibrar o juízo de quem pensava demais e perturbava, na mesma intensidade, a vida comedida que tantos, rotineiramente, levam. Lima Barreto definhou e definiu o Hospital Nacional de Alienados como “Cemitério dos Vivos”, título do seu romance inacabado de 1920.

A vida é um delírio. Principalmente para quem pensa. “Porque quem pensa, pensa melhor parado!”, entoou Raul Seixas em ‘Metrô Linha 473’. Por pensar no afã de mudar o mundo e falar o que quis, Lima Barreto foi dos primeiros “cancelados” [expressão hoje comum no mundo cibernético] de que se há notícia, ignorado pela crítica e pelos editores. Calado! Silenciado!

Hoje, em tempos bicudos, que levam tantos à tentação da hoste adesista, da rendição coletiva, das frivolidades culturais e políticas… para não morrerem em vida, deve prevalecer a memória de quem ousou falar, sabendo que o preço era/é ser marginalizado.

O espólio de Lima é ele próprio continuar personagem cultuada por policarpos, os idealistas que vociferam ante o sistema. Démodé a palavra sistema. E mais ainda o seu significado birrento, que teima existir. Que país foi este?

Sobre o autor

Às ordens em minhas redes sociais e no e-mail: julioolivar@hotmail.com . Todas às segundas-feiras no ar na Rádio CBN Amazônia às 13h20.

*O conteúdo é de responsabilidade do colunista

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