Crônica: as fendas da história na Semana da Memória em Porto Velho

Em minha palestra, exaltei as fontes primárias como fundamentais para a produção textual.

A palestra de abertura da Semana da Memória, em Porto Velho. Foto: Assessoria/TJ

Por Júlio Olivar – julioolivar@hotmail.com

Na Semana de Memória do Tribunal de Justiça em Porto Velho – 1º a 5 de julho de 2024 –, as fendas da história se abriram diante de mim. A cidade, marcada por uma pluralidade arquitetônica e uma identidade sem padrões rígidos, revelou-se como um livro aberto, com páginas que se desdobravam em cada esquina.

Há cinco anos, eu não visitava Porto Velho. O retorno à cidade ocorreu por ocasião de uma palestra que ministrei no CCDH (Centro Cultural de Documentação Histórica) nesta semana. O convite partiu do desembargador Alexandre Miguel, diretor da Emeron (Escola da Magistratura do Estado de Rondônia), um ardoroso entusiasta e conhecedor profundo da cultura e da memória rondonienses.

Minha palestra, embora bem preparada, ficou aquém das minhas expectativas. Não sou um conferencista por profissão, mas por atrevimento. Estudei bastante, elaborei slides e planejei a abordagem da temática proposta. No entanto, talento é inato, e eu, no máximo, sou um esforçado. A boa fala requer equilíbrio entre conhecimento formal e o olhar poético que emana carisma. Como dizia Marco Túlio Cícero: “Poeta nascitur, orator fit”. É importante ressaltar que não sou historiador, mas um pesquisador independente.

Em Rondônia, há renomados historiadores e autores que oferecem vasta bibliografia. Para mim, o ítalo-brasileiro Vitor Hugo foi a porta de entrada para outros nomes que dedicaram suas vidas à elucidação e ao registro da história. Ao escrever, meu olhar é de escritor e jornalista, não de historiador. Inspiro-me na cultura de almanaques, mas baseio-me em pesquisas em fontes primárias – o verdadeiro tesouro para quem aprecia viajar pela história por meio de documentos de época. Às vezes, a imersão é tão intensa que me sinto fazendo uma reportagem contemporânea. As fontes orais também são essenciais, embora carregadas de afetividade e romantismo. Elas complementam o que as fontes primárias podem omitir, pois são discursos fundamentados em interpretações, mesmo que bem-intencionados e impessoais.

O Poder Judiciário é o ponto de convergência de todos os poderes e da sociedade, inclusive pelo que não é dito. A análise de discurso revela desde o contundente até o silêncio e as omissões que invisibilizam as diversas castas sociais. Tudo está mudando. Mas nem sempre a justiça foi plural. As mais de oito mil peças processuais e documentos raros do CCDH permitem um olhar profundo sobre a sociedade desde o início do século XX. Há registros de assassinatos em botecos e grandes conflitos, como o Massacre de Corumbiara e o assassinato do senador Olavo Pires, aqui citados só para ilustrar.

Além do aspecto institucional, os processos revelam hábitos e costumes, vocabulário, moda, consumo de bens e serviços, relações humanas e a sofisticação tecnológica – para a época – do comércio portuário antes da implantação da ferrovia em 1912.

Na abertura da Semana da Memória do Poder Judiciário, apresentei um material preparado com dedicação, mas acabei me perdendo, atropelando o esquema que eu mesmo havia traçado.

Falar em público é visceral, sem filtros, ao contrário da escrita solitária e reflexiva, depurada nas fases de revisão e edição até se tornar um produto final. O vocabulário some sob pressão, e as palavras certas nem sempre vêm à ponta da língua para definir uma ideia. Assim é a vida do orador, do pesquisador, do escritor – um equilíbrio delicado entre o atrevimento e a busca pela verdade histórica.

A minha abordagem na palestra seria não focar exclusivamente na história, mas sim nos processos judiciais essenciais que moldaram a história. O alicerce que eu gostaria de estabelecer envolveria mencionar as fontes formais do CCDH – as quais utilizei principalmente para escrever o livro “A Cidade que Não Existe Mais” – a fim de chegar a determinadas conclusões. A relevância das fontes primárias reside na capacidade de criar uma narrativa original que transcenda o simples “copiar e colar” tão comum na era virtual, em que muitas vezes confundem bibliografia com plágio disfarçado por citações literais.

Embora inicialmente não fosse minha intenção, acabei abordando questões históricas de maneira descontraída, quase como um “almanaqueiro”. Nesse sentido, me inspiro em Elifas Andratto, um grande colecionador de dados, estatísticas, iconografias e curiosidades extraídas das histórias escritas por acadêmicos. Quem se lembra do “Almanaque Brasil”? Essa revista de bordo da TAM, editada por Andreatto, grande artista e editor que também foi responsável por ilustrar capas de discos – uma profissão que, infelizmente, se tornou obsoleta.

A história sempre me fascina e me impulsiona a buscar respostas além do que está registrado em ordem cronológica, conectando-a à geopolítica e considerando fatores antropológicos, sociológicos, arqueológicos e filosóficos. Tudo isso é relevante. No entanto, acredito que a verdadeira escrita histórica não se limita a ser uma mera compilação de fatos; ela deve permitir ao autor empregar adjetivos e explorar discursos que se assemelham a romances ou reportagens jornalísticas.

Laurentino Gomes é um mestre nesse estilo, tendo ganhado dois prêmios Jabuti e se tornado um best-seller no campo da historiografia – algo notável e inédito até então.

A narrativa historiográfica, quando pura e simples, exige impessoalidade e serve como um recurso para pesquisadores que buscam fontes. Geralmente, é repleta de notas de rodapé que transferem a responsabilidade para outros autores quando se afirma algo com incerteza. Aqueles que ousam ir além desse padrão demonstram compreensão do material lido e a capacidade de escrever – e até mesmo cometer erros – por conta própria.

Em resumo, durante a palestra, me vi perdido diante da vastidão do que gostaria de ter dito e não disse, bem como das muitas coisas que surgiram espontaneamente em minha mente e que talvez não devesse ter mencionado. Foi como uma tempestade de ideias que eu desejava compartilhar naquele momento. O meu objetivo sempre é provocar e despertar o interesse das pessoa. Acredito que uma boa palestra deve gerar dúvidas, em vez de apenas confirmar o que todos já sabem ou supõem.

A história está repleta de fendas e nuances, e é nesse espaço que me sinto à vontade. Como um leitor-escritor, observo a história que está escrita, inclusive no cenário mundial, desde os registros precisos dos brasilianistas sobre a vida no Alto Rio Madeira, muito antes da famosa Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, que muitos consideram o marco-zero de Rondônia no século XIX.

Além da palestra, um olhar para o agora

Desde o início de 2009, eu não havia estado em Porto Velho. Durante a Semana de Memória do TJ, tive a oportunidade de revisitar a cidade e comparar muitos aspectos da sua cena cultural.

Uma das minhas paradas foi no Museu da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (EFMM). O espaço apresenta uma nova configuração, diferente das revitalizações anteriores. Não vou entrar em detalhes sobre o formato estético e de conteúdo atual, que perdeu parte da rusticidade original. No entanto, notei um rigor maior nas visitações, guiadas e orientadas. Concordo que tudo deva ter uma certa disciplina, ainda mais quando se trata de equipamento públicos que, quando sucateados, passam anos sem manutenção.

Dentro do museu, a exposição permanente sobre a epopeia da ferrovia está bem contada e didática.

Algo me chamou a atenção: um painel com 424 cabeças esculpidas em argila e sedimentos do Rio Madeira, obra do artista plástico Bruno Souza. Cada rosto, cada expressão, representa uma pessoa diferente que contribuiu para a construção de tudo o que Porto Velho é hoje. Essa diversidade humana é a verdadeira riqueza da cidade.

No museu da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, as cabeças de cerâmica. Foto: Júlio Olivar

Mas não foram apenas os pontos culturais que me chamaram a atenção. A transformação digital, ditada por IA e algoritmos, também deixa suas marcas. Os sebos, outrora redutos de livros usados, perderam força, e as bancas de jornal não mais exibem publicações atualizadas. O mundo virtual se impõe, mas a vida, teimosa, continua analógica.

Claro que esse cenário não é exclusivo de Porto Velho; é uma tendência global. Tudo se virtualizou, está nas nuvens, acessível na palma da mão. Mesmo a EFMM, apesar de sua beleza, perdeu parte de sua presença tátil. A vida, no entanto, continua analógica. Como alguém que chegou ao novo milênio aos 27 anos, posso afirmar: envelhecemos junto com as mudanças irreversíveis.

Em meio a essa dualidade – virtual e tangível –, percebi que as fontes primárias continuam sendo o lastro essencial para qualquer produção textual. Elas nos conectam ao passado, às vozes que ecoam nas entrelinhas da história. E assim, na palestra no CCDH, exaltei a importância dessas fontes, lembrando que a verdadeira riqueza de Porto Velho reside em seu povo diverso, nas fendas que nos permitem enxergar além do óbvio. As memórias, como as cabeças no painel de Bruno Souza, são fragmentos que se unem para contar uma história.

E naquele momento, diante da plateia atenta, eu me senti parte dessa narrativa, navegando pelas águas do Rio Madeira, entre o analógico e o virtual, entre o passado e o presente.

Nota do autor: A história é um mosaico, e cada peça tem sua relevância. Que possamos explorar as fendas, as brechas, e descobrir nelas a essência de quem somos.

Sobre o autor

Júlio Olivar é jornalista e escritor, mora em Rondônia, tem livros publicados nos campos da biografia, história e poesia. É membro da Academia Rondoniense de Letras. Apaixonado pela Amazônia e pela memória nacional.

*O conteúdo é de responsabilidade do colunista

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