Vespasiano morreu aos 32 anos e deixou um único livro. Foto: Júlio Olivar/Acervo pessoal
Por Júlio Olivar – julioolivar@hotmail.com
João Alfredo de Mendonça era um jornalista proeminente da região. Apesar de haver outros redatores no modesto jornal “O Município”, ele se destacava pelo trabalho meticuloso e o faro de repórter à moda antiga, caracterizado por um estilo descritivo repleto de adjetivos.
Seu breve período de residência em Porto Velho ocorreu antes da era do rádio no Brasil, iniciada em 1923, no Rio de Janeiro. Naquela época, toda a comunicação social acontecia através das páginas impressas em tipografia e nas telas silenciosas dos cinemas.
“Cantores” e “trovadores” – como também eram chamados os poetas – declamavam em bares e cineteatros; quando possível, publicavam na imprensa, um estágio anterior à publicação em livros. Foi numa dessas “cantorias” que Mendonça conheceu Vespasiano Ramos, em 1914, em Belém.
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Quando se conheceram, a fama do poeta já era grande na cidade. “A voz melodiosa e gemente, a voz de sofredor, de caminhante do infinito”, assim o “cantor” Vespasiano Ramos foi descrito pela crítica de “O Estado do Pará”, após uma apresentação repleta de “bravos!” em novembro de 1912.
Mendonça e Vespasiano fundaram juntos a Associação de Belas Letras de Belém. O poeta já havia trabalhado com o jornalista na “Folha da Noite”, importante matutino do Pará, onde também promoviam conferências, tertúlias e saraus, como o Festival de Poesias no Teatro da Paz. Ali, Vespasiano conviveu com Humberto de Campos e Maranhão Sobrinho, maranhenses, e com Mendonça, paraense de Abaeté, grandes nomes da literatura.
O jornalista João Alfredo de Mendonça passou por muitos percalços nesse meio tempo. Chegou a ser julgado por homicídio em 1913 e 1914. O tempo passou. Em 1916, aportou em Porto Velho o poeta já reconhecido no Maranhão, Piauí, Pará e Amazonas: Joaquim Vespasiano Ramos, Vespa para os amigos.
Vitrines para os bardos, todos os jornais que se prezavam reservavam espaços para essa vertente literária, considerada maior que crônicas, novelas e contos. Trovadores eram artistas, enquanto os demais eram “polemistas” remunerados e partidários. Vespasiano Ramos era o “Poeta do Amor”, um parnasiano sentimental e lírico, sempre envolto em reflexões apaixonadas e sensuais, como em “Cruel”:
“Se o desejo que eu tenho ela tivesse,/ Se os meus sonhos de amor ela sonhasse,/ Aos meus fogos talvez não se opusesse” (…).

Vespa veio para os confins da Amazônia – Porto Velho tinha apenas dois anos como cidade constituída – fugindo de um amor não correspondido. Decidiu, para manter-se longe da boemia e da amada, embrenhar-se no seringal do ricaço Aureliano Borges do Carmo, um amigo que conhecera no Pará e que vivia em Papagaios, atual cidade de Ariquemes. O poeta pretendia trabalhar como guarda-livros [como se chamavam os contabilistas na época] de Aureliano.
O próprio João Mendonça relatou: “Chegara o poeta a Porto Velho no dia 3 de novembro de 1916, a bordo do ‘Andresen’, navio pertencente à frota mercante de Manaus, onde Vespasiano tomara passagem na gaiola, com destino ao seringal de propriedade do seu amigo coronel Aureliano Borges do Carmo”.
Ainda a bordo, o poeta mandou um bilhete e um presente, portador de ambos o contínuo Rufino, que fora buscar a correspondência oficial da prefeitura, trazida pelo agente do posto embarcado. No bilhete, escrito a lápis, Vespasiano pedia que o amigo Mendonça fosse ao navio, onde o aguardava “com uma cervejinha gelada, desejando um bom dia e outros singelos gracejos que caracterizavam o poeta”, contou Mendonça ao receber a mensagem.
Foi com a ideia de escrever o livro “Poema da Amazônia” que Vespasiano Ramos deixou o Rio de Janeiro e regressou a Belém, de onde rumou para o Madeira, em busca do seringal, que lhe oferecia refúgio propício e ambiente espiritual para tentar o empreendimento que constituía o seu grande sonho.
Vespasiano tinha 32 anos e havia acabado de lançar no Rio de Janeiro, entre convivas da clássica Confeitaria Colombo frequentada por imortais da Academia Brasileira de Letras, o livro “Cousa Alguma”, sua única obra reunida. Muito antes, ainda adolescente, já publicava trabalhos nos jornais de sua terra natal, Caxias, “a cidade dos poetas” que também deu ao mundo Gonçalves Dias e Coelho Neto.
Em 15 de novembro de 1916, o jornal “O Município” publicou o poema “Ave, França”. Um mês depois, Vespasiano começou a dar mostras da sua fragilidade. O médico Joaquim Tanajura foi chamado e o diagnosticou com tuberculose. Também o assistiu, com a mesma opinião, o veterano médico Carlos Grey, que vindo de Manaus – onde clinicava desde o século anterior – passou uma temporada em Porto Velho.
O amigo jornalista quis levar o doente para sua casa, mas ele recusou, preferindo permanecer hospedado na redação do próprio jornal. Vespa viveu apenas algumas semanas em Porto Velho. É reconhecido como “O precursor das letras” e símbolo de Rondônia no Mapa Brasileiro de Literatura desenvolvido em 2017 pela revista Super Interessante, pois foi o primeiro a emergir após a criação da atual capital rondoniense.
Na verdade, Vespasiano chegou a estas paragens já doente, sofrendo de cirrose, mas ainda assim não dispensava um trago. Quando Mendonça foi tomar uma cerveja com o amigo ao entardecer às margens do Rio Madeira, percebeu que Vespa estava “muito pálido e trêmulo”. No dia 22 de dezembro, enquanto Mendonça preparava a edição especial de Natal, perguntou ao poeta:
– “Vespa, queres escrever uns versos para “O Município?”.
“Pedindo umas folhas de papel de impressão e um lápis, sentado na rede armada a um canto da sala, perto dos caixotins onde o tipógrafo Durval Lopes, com o componedor em punho, formava os paquêts, Vespasiano Ramos, sob a ardência de uma febre de quase quarenta graus, escreveu de um ímpeto, sem emendas, formosos versos que refletem todo o misticismo de sua alma simples e cheia de bondade e ternura”, registrou João Alfredo de Mendonça.

“Prece para as criancinhas” foi o último soneto escrito por Vespasiano Ramos, sob febre ardente, quatro dias antes de sua morte. Curiosamente, no poema de cunho religioso, Vespasiano fala, na terceira estrofe, da Primeira Guerra Mundial (1914/1918). Incomum, como seria qualquer outra questão social abordada em sua obra: “Suave Jesus! Além, do outro lado,/ Rugem canhões plantando a guerra:/ Rios de sangue se têm formado/ Sobre a planície triste da Terra”.
No dia 23, embora contra sua vontade, ele foi levado para a casa de João Alfredo. Ainda assim, pôde ler seu poema estampado na capa do jornal. O Natal era a celebração que mais acalentava seu coração, e ele a viveu pela última vez, expurgando todos os pecados.
Anêmico e entregue à luxúria, assim estava Vespasiano à beira da morte. Pediu ao amigo que enviasse uma mensagem telegráfica à sua mãe, em sua terra natal, Caxias (MA), desejando-lhe um feliz 1917. Pereceu logo depois. Atestado de óbito: malária, agravada pela possível desnutrição, cirrose e tuberculose. Morreu na casa do diretor do jornal. Sua vida se esvaiu poeticamente às duas da tarde de uma chuvosa terça-feira pós-natal. Com uma vela na mão, exaltava seu catolicismo, talvez buscando um lenitivo ou uma indulgência para os excessos da carne que o conduziram prematuramente ao além.
A chama trêmula da vela refletia não só sua fé, mas também a fragilidade da vida, que, mesmo em seus momentos finais, é marcada por uma busca incessante por redenção e paz. Ele estava nos braços do velho amigo quando pronunciou suas últimas palavras: “Minha mãe, minha mãe! Muito obrigado! Adeus!”.
Diante da cena, Mendonça lembrou de uma trova singela: “Não há tristeza, no mundo / Que se compare à tristeza / Dos olhos de um moribundo/ Fitando uma vela acesa”. Chamaram o médico, Dr. Joaquim Augusto Tanajura, prefeito eleito prestes a tomar posse. Vespasiano foi levado para o recém-inaugurado Cemitério dos Inocentes.
Desceu à sepultura no alto do terreno. Seu poema mais famoso, “Ao Cristo”, foi colocado na lápide do túmulo e é frequentemente editado [sem autorização] com trechos, palavras e pontuações ausentes. Aqui o publico em sua forma original, tal qual o quis Vespa:
Ó Sombra… Ó essência… Ó espírito… Ó bondade!
Soberano senhor dos soberanos. Esperança dos míseros humanos.
Jesus – Misericórdia e Caridade!
Cristo-Amor… Cristo-Luz. Cristo-Piedade!
Divino apagador dos desenganos.
Ó, tu que foste há quase dois mil anos,
Sacrificado pela Humanidade.
Prometeste voltar! Não voltes, Cristo!
Serás preso, de novo, às horas mudas,
Depois de novos e divinos atos.
Porque, na Terra, deu-se apenas isto:
– Multiplicou-se o número de Judas.
E vai crescendo a prole de Pilatos!…
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Sobre o autor
Júlio Olivar é jornalista e escritor, mora em Rondônia, tem livros publicados nos campos da biografia, história e poesia. É membro da Academia Rondoniense de Letras. Apaixonado pela Amazônia e pela memória nacional.
*O conteúdo é de responsabilidade do colunista
