Venezuelanos deixam casa e família para buscar sustento no Brasil

Trocar uma casa na paradisíaca Ilha de Margarita, na Venezuela, por uma pequena barraca em Boa Vista, Roraima, fez todo o sentido para Jennifer Bolívar, 28, e Giovanny Ríos, 30. O casal, antes de classe média, foi perdendo aos poucos a vida que acreditava ser segura.

“É um pouco desesperador. Quando se tem uma estabilidade, não se imagina. Eu nunca imaginei que comeria só uma vez ao dia, que daria comida pro meu filho só uma vez no dia. Não imaginava passar por isto”, diz a moça.

Jennifer e Giovanny se agacharam em no canto do abrigo Latife Salomão, um dos seis montados na capital do estado, e fizeram sua última refeição na cidade. No dia seguinte, sexta-feira (4), partiriam para Manaus. Mas a jovem, de estatura baixa e grandes olhos pretos, mal tocou na comida. Segurou a embalagem de isopor fechada, com uma maçã em cima, enquanto conversava com a reportagem. Seu marido devorava o jantar, com arroz, feijão, frango e salada.

“É que almocei tarde, não estou com muita fome”, disse, sorrindo, tímida. O fato de poder escolher não comer naquele momento já faz Jennifer não pensar em voltar tão cedo. Agora, ela espera se estabelecer na capital amazonense. Com fala firme e articulada, ela torce encontrar emprego rápido e conta também com o sucesso profissional do marido. “Vou com essa certeza, com fé de que vou encontrar algo e seguir em frente. Meu marido é chef de cozinha. Não digo só porque é meu marido, mas ele tem muita experiência, é muito responsável e trabalhador”. O casal chamou atenção dos militares que prestam apoio no Latife Salomão.

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
“É um casal diferenciado”, disse um militar que ajudava a organizar a entrega do jantar. “Deu para notar logo de cara. Eles se destacam dos demais”. Esse mesmo homem conversou com um amigo em Manaus e arranjou uma entrevista de emprego para Giovanny. “Estou ansioso para chegar a Manaus para ver as ofertas de trabalho. Quero trabalhar. Não me imaginava nessa situação, mas sei que isto vai passar”, diz o chef.

O objetivo é trazer, o quanto antes. o filho que ficou na Venezuela. Ao lembrar dele, Jennifer fraqueja e chora. O descompasso na voz surge ao falar da preferência em deixar a criança com a avó, por não saber que condições encontrariam no Brasil. Ao mesmo tempo, sabe que sua mãe não tem condições de cuidar do neto.

No mesmo abrigo, Evelin García, 30, segurava um bebê no colo enquanto outras crianças corriam ao seu redor. Ela trouxe os quatro filhos e também se preparava para ir com eles e o marido para Manaus.Evelin sente falta da sua casa, do conforto, mas pensa nos filhos. “É bem duro sair da sua casa quando já tem suas comodidades, sua cama. Mas do que vale ter comodidade e seus filhos passarem fome?”.

A desvalorização da moeda local e a escassez de alimentos é o principal motivo para cerca de 92 mil venezuelanos já terem cruzado a fronteira – pouco mais de 44 mil já deixaram o Brasil – e buscado alguma forma de apoio aqui. Com um salário mínimo não se pode comprar mais do que um saco de arroz e metade de um frango.

Edwin Herrera ainda é jovem. Tem 18 anos e arrumava, ansioso, as malas para ir para São Paulo, para onde alguns amigos já foram.“Trabalho de faz-tudo. Trabalho em lavanderia, de cozinheiro, pintor de casa, de muro”. Veio sozinho e não fala com a mãe há quatro meses. 

Teve que vender o telefone celular para comprar roupa e comida. Na sexta-feira fechou a bolsa azul surrada com tudo que tinha. Ele lamenta ter que sair de seu país para conseguir trabalho. “Estão passando muitas dificuldades. Tudo aumenta, o governo nunca muda. Os líderes comunitários não ajudam as pessoas e elas não se unem. Sempre há brigas, dizendo que o governo é isso, é aquilo.”

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Diferenças

De acordo com a Agência das Nações Unidas para as Migrações (OIM), 67% dos migrantes deixaram a terra natal por motivos econômicos e falta de trabalho. Outros 22% por falta de comida e serviços médicos. Quando chegou no Brasil, em dezembro, Alberto Aguillar, 25, ficou satisfeito ao ver os supermercados. “Aqui tem todo tipo de comida nos mercados. Lá é tudo vazio, só tem produtos de limpeza”.

Julio Rangel pretende tentar emprego em Boa Vista e quer fazer cursos para conhecer melhor o Brasil. Para ele, a maior diferença ao entrar no Brasil foi ver a oferta de comida. “É como se eu tivesse saído de um lugar obscuro para a Disney World (risos). A primeira diferença foi ver todo mundo comendo. Aqui eu vi  muita comida nos supermercados, comida que dão, que compartilham. Vi os cachorros comendo comida boa. Na Venezuela não deixam comida para os cachorros”.

Recepção

Ao chegarem ao Brasil, entrando pela pequena Pacaraima, no norte de Roraima, muitos venezuelanos tiveram que vencer a desconfiança. Alguns foram insultados, outros receberam alguma forma de ajuda. Em geral, o discurso dos que buscam refúgio evita generalizar. “Existem pessoas boas e pessoas más”, sintetizou Alberto. Já no Brasil, ele conseguiu emprego. Mas, dois meses depois, parou de receber.

Evelin conheceu os dois lados. Foi chamada de “pilantra” e isso a machucou. Mas pessoas boas cruzaram seu caminho e ela recebeu doações para seus filhos. “Graças a Deus muitos brasileiros me ajudaram com meus filhos. No primeiro dia que cheguei me deram fraldas e leite de presente. Isso para mim foi como ‘obrigado, Senhor’”.

Após o grande fluxo migratório inicial, muitos estrangeiros já foram para outros países da América do Sul, como Argentina e Colômbia, ou interiorizaram no Brasil por conta própria. Hoje, Boa Vista abriga cerca de 4 e 6 mil migrantes e isso contribui para o aumento da violência urbana. Um grupo de fotógrafos que visitou, na última quinta-feira (3), a Praça Simón Bolívar, onde dezenas de venezuelanos ainda se abrigam, foi recomendado a não permanecer no local após escurecer.

Jennifer se preocupa com a imagem que os compatriotas deixam no Brasil. “Eu quero pedir desculpas em nome do povo venezuelano porque chegaram pessoas que não tiveram bom comportamento. Mas nem todos os venezuelanos que estão aqui são iguais. Existem pessoas trabalhadoras,  que querem lutar, seguir em frente”.

“A violência urbana é claro que cresceu. Porque é uma população desassistida, faminta e doente”, diz a delegada Rosilene Santiago, superintendente da Polícia Federal em Roraima. A PF tem feito, diariamente, entre 800 e mil atendimentos a venezuelanos. Durante todo o ano de 2017, foram 22 mil pedidos de refúgio. Em 2018, de janeiro a abril, os pedidos já passaram de 24 mil.Há previsão de aumento no número de abrigos. Além dos já existentes, o Exército trabalha para montar mais três em Boa Vista e mais um em Pacaraima. A tendência, segundo Rosilene, é crescer o número de pedidos de refúgio. “Este ano, até abril, o número de pedidos de refúgio 
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