Choque térmico nos frutos, entre 80 ºC e 90 ºC, é essencial para inativar agentes patogênicos, como o da doença de Chagas
Uma pesquisa da Embrapa demonstrou que não existem alterações no cheiro, textura e sabor da bebida de açaí (Euterpe oleracea Mart.) cujos frutos passam pelo choque térmico na temperatura de 80°C a 90°C, etapa essencial para inativação do Trypanosoma cruzi, causador da doença de Chagas, que pode estar presente em barbeiros contaminados. Realizado com consumidores do açaí tradicional da Região Norte, o estudo científico desmistifica o temor de que o calor alteraria as propriedades do alimento. Esse preconceito é uma das principais causas da rejeição do produto final por parte da população e de alguns batedores, cujos frutos foram submetidos a tratamento térmico.
Participaram do ensaio sensorial 272 pessoas, entre homens e mulheres, que consomem açaí cotidianamente. A imensa maioria dos entrevistados (95,5%) aprovou o produto tratado termicamente, justificando apreciar as qualidades do que consideram o bom açaí: grosso e com cor, aroma e sabor característicos. Eles também afirmaram que comprariam o produto usado no ensaio, açaí médio preparado em batedeiras após os frutos serem tratados termicamente.
Mergulho quente por dez segundos
O choque térmico nos frutos, ou branqueamento como é popularmente conhecido, elimina vários microrganismos causadores de doenças adquiridas por açaí contaminado, entre eles, o protozoário Trypanosoma cruzi, causador da doença de Chagas.
“O batedor de açaí deve mergulhar os frutos higienizados em água aquecida em temperatura de 80 °C a 90 °C durante dez segundos. Em seguida, os frutos devem ser resfriados em outro tanque com água limpa em temperatura ambiente, por dois minutos. Com esse procedimento e as demais etapas das boas práticas, vários agentes causadores de doenças são eliminados”, destaca a pesquisadora Valeria Saldanha Bezerra.
Ela explica que a pesquisa procurou avaliar rumores de que esse tipo de sanitização causaria mudanças nas características originais do açaí, um preconceito que faria o consumidor rejeitar o produto. Por isso, a pesquisa de análise sensorial envolveu os próprios consumidores de açaí tradicional para testar a hipótese. A análise sensorial envolve percepções por meio dos órgãos dos sentidos, no caso dessa pesquisa, foram enfatizados o olfato, o paladar e a visão.
Durante dois dias, pessoas que consomem açaí pelo menos uma vez na semana se tornaram voluntários. Eles degustaram a bebida e, em seguida, preencheram uma ficha de avaliação com perguntas socioeconômicas, impressão geral do produto e a intenção de compra.
“Os consumidores tradicionais da bebida aceitaram o produto processado após choque térmico dos frutos, descrevendo-o com características positivas e expressando a efetiva intenção de compra do produto, contrapondo a alegação de algumas pessoas de que esse tipo de sanitização leva a alterações perceptíveis ao consumidor tradicional de açaí, causando um reflexo negativo na venda do produto”, concluiu a pesquisadora.
95,5% gostaram muito do açaí
O estudo envolveu 272 consumidores de açaí, 71% deles em idade entre 15 e 50 anos, a faixa etária considerada ideal para avaliação sensorial. O teste de aceitação revelou que 95,5% destes consumidores valoraram o açaí com nota 8 ou maior que 8. Na análise, significa que gostaram muito a extremamente da bebida.
Em relação à descrição da bebida açaí, as expressões mais selecionadas pelos consumidores avaliadores foram: sabor de açaí, tipo grosso, cor e cheiro típicos da bebida. Estas são palavras que positivamente identificam as características boas do açaí. “Após a avaliação dos dados de intenção de compra dos consumidores sobre o açaí batido, observamos que 94,9% comprariam aquela bebida. Se a este valor adicionarmos as notas 4 que é provavelmente comprariam, chegaríamos ao universo de 100% dos consumidores que comprariam aquele açaí de frutos processados após choque térmico”, destaca a cientista.
Assim, os pesquisadores concluíram que a etapa de choque térmico nos frutos de açaí, em temperatura de 80 a 90 graus Celsius, não levou a alterações perceptíveis pelo consumidor tradicional da bebida açaí, principalmente em relação ao sabor, cheiro e à coloração que são os principais atributos observados.
A pergunta de partida da análise sensorial junto aos consumidores avaliadores foi “O quanto você gostou dessa amostra de açaí? Para isso foi utilizada uma escala hedônica estruturada de nove pontos, em forma decrescente desde “gostei extremamente” até “desgostei extremamente”. Para descrever a amostra, a equipe da Embrapa utilizou o método CATA (Check-All-That-Apply) onde várias palavras foram colocadas no formulário e o consumidor escolheu a que mais representava a amostra que ele estava provando. Para a variação da intenção de compra, foi utilizada uma escala estruturada de cinco pontos, de forma decrescente, na qual constava desde “certamente iria comprar esse produto” até “certamente não iria comprar este produto”.
O açaí e a doença de Chagas
Açaí, para boa parte da população da região Norte, significa refeição diária, com a mesma importância do feijão, por exemplo. Dona Maria Deulinda Ribeiro Nobre, 67, residente em Macapá, vive esse hábito desde a infância. Mas foi a partir de 2008, quando recebeu o diagnostico de doença de Chagas, que ela ficou mais atenta. “Fiquei seis meses hospitalizada, e ficou comprovado que eu e mais 16 pessoas tivemos essa doença devido ao açaí contaminado. Tenho muita precaução, mais consciência. Não tomo de qualquer batedeira. Acho muito importante esse processo do branqueamento (choque térmico). O gosto do açaí não altera nada, fica do mesmo jeito. E fica higiênico e livre da doença de Chagas. Aconselho que todas as pessoas, se puderem tomar açaí de batedeira que faça esse processo (choque térmico) é muito bom”.
Ela recorda que desde criança é acostumada com a bebida do açaí diariamente à mesa. “Fui criada com açaí, peixe frito, caça, por isso, me acostumei com o açaí todos os dias. Hoje em dia é assim, açaí logo depois do almoço e da janta, acompanhado de farinha. Quando era criança, a gente apanhava e colocava de molho na água quente, amassava na mão mesmo, não tinha esses cuidados de hoje. Melhorou muito e a gente tem que ficar atento”, observa dona Deulinda.
Diego Felipe Oliveira Assis, 32, também de Macapá, ressalta que a filha de três anos já foi iniciada no hábito alimentar do açaí diariamente. “A gente começou a consumir mais ainda quando nossa filha, desde a fase da introdução de alimentos, começou a tomar açaí. Daí me preocupei em comprar de uma batedeira que tivesse o melhor tratamento possível para que os riscos sejam mínimos a nossa saúde”. Para Assis, o açaí proveniente da batedeira que ele confia chega a ser mais saboroso. “Aqui em casa percebemos que é um açaí mais saboroso e menos perecível, como diz popularmente: ele não azeda no outro dia. A gente almoça açaí todo dia, junto com proteínas e os carboidratos,” conta.