Maria Moreira: uma história de vida no Mercado Adolpho Lisboa

A fisionomia urbana de Manaus do período em que viveu Maria Moreira Gomes reflete bem o espírito da sociedade que aqui floresceu em fins de 1800 e início de 1900.

A verdureira Maria Moreira Gomes nasceu em Manaus, no dia 10 de maio de 1887, na Rua Doutor Machado e foi registrada no Consulado Português, em Manaus, como portuguesa. Casou em primeira nupcia com o senhor João de Mattos. Desse casamento trouxe ao mundo nove filhos, todos homens. Posteriormente, ficou viúva e casou em segunda nupcia com Anísio Magno Barroso, nascido deste casamento três filhos, todas mulheres. Os filhos do primeiro casamento foram: Jorge Mattos, José Mattos, Antônio Mattos e Manuel Mattos.

Foto: Abrahim Baze/Acervo pessoal

Mulher de vida pacata, dormia cedo e acordava cedo. Tinha o hábito de tomar vinho no almoço e no jantar. Dedicou toda sua vida ao trabalho no Mercado Adolpho com vendas de verduras e hortaliças, era a pessoa mais popular na área. Em Portugal, vivia uma de suas irmãs e outra no Rio de Janeiro. Maria Moreira guardava boas lembranças do Mercado, inclusive, do primeiro, antes da reforma, falava da construção do Porto de Manaus, Farmácia Lemos e do Banco Canavarro que, mais tarde, passou a ser Ferragens Canavarro. Mulher de excelente memória lembrava-se das Ruas Leonardo Malcher, Doutor Machado e Eduardo Ribeiro, as Igrejas da Matriz e dos Remédios, a construção das pontes da Cachoeirinha e da Chapada, no Governo de Eduardo Ribeiro. Ela participava do Carnaval em Manaus quando os carros alegóricos eram com tração animal. Tendo trabalhado como lavadeira, cortou lenha para usinas de bonde.

A tradição de trabalhar no Mercado Adolpho Lisboa passou para os filhos, tendo um dos netos permanecido até hoje com a concessão de um box no Mercado.  

Foto: Reprodução/Acervo BN Digital

“… Foi noticiado no Jornal A notícia, no dia 02 de junho de 1988: Morre uma das figuras mais tradicionais. Dezenas de pessoas, entre amigos e colegas de trabalho acompanharam ontem, o enterro da centenária dona Maria Moreira Gomes, conhecida como Maria Portuguesa, querida e admirada por todos, que no dia a dia costumava ir ao mercado para trabalhar.

Maria Portuguesa morreu ontem, em sua residência, às 15h, por complicações trazidas pela idade. Ela completou, no último dia 10 do mês passado 101 anos. Para os amigos que levaram ao último adeus, só havia uma coisa a dizer sobre Maria Portuguesa: O seu exemplo de luta e de perseverança no dia a dia, buscando sempre o trabalho de feirante, desde os primórdios tempos do Mercado Municipal.

Agraciada com uma banca de n. 07, no Mercado Municipal, após a reforma na gestão do Prefeito Jorge Teixeira, Maria só de trabalho tinha 67 anos que lhe tornaram popular a todos que no dia a dia frequentavam o mercado. Para quem a conheceu, Maria não vendia somente verduras e plantas medicinais, vendia também todo o seu conhecimento sobre o Mercado Municipal, pois sabia de todos os momentos históricos do local e, dos áureos tempos em que como sempre relembrava os filhos, a comida era farta quando tinha tartaruga, a carne e o peixe. Maria trabalhou até 100 anos. No ano passado, em maio, seu centenário foi comemorado por todos os colegas do mercado e pelas autoridades. Como a idade já não lhe permitia os excessos teve que parar, mesmo contra sua vontade. Continuava lúcida e sempre relembrando suas andanças. Trazida sempre pelo carma de feirante e, em casa, segundo seu filho Antônio Mattos, Maria dedicava-se a criar galinhas e patos, em seu quintal, quase sempre para dar de presente a algum amigo.

Por duas vezes, foi condecorada a mãe do ano, em 1986 e 1987, numa homenagem feita pela Rádio Difusora. Sua popularidade, como sempre, lhe rendia homenagens daqueles que sempre a apontavam no Mercado Municipal. Maria Portuguesa deixou cinco filhos: Antônio Mattos, Manuel Mattos, José Gomes Mattos, Jorge Mattos e Maria Araújo Damasceno, além de 27 netos e 18 bisnetos.

Foto: Reprodução/Instituto Durango Duarte

Quem foi Maria Portuguesa 

Dedicada e meiga Maria Moreira Gomes, a portuguesa do Mercado Adolpho Lisboa, somente quem a conhecia poderia saber do que ela já havia feito para sobreviver na vida. Foi barbeira, mateira, chofer de praça, carregadora do mercado, empregada doméstica que encerrou sua vida como verdureira no Mercado Adolpho Lisboa. Foi sinônimo de trabalho, admirada por todos e sempre vaidosa, era realmente de uma felicidade que impressionava todos em sua volta.

Na labuta diária, acordava às 4 horas da madrugada e se dirigia ao Mercado, naturalmente vendendo suas plantas, verduras e hortaliças cultivadas em seu próprio quintal, tais como: mucuracaá, cala-boca, jiboia, mão-aberta, samandaru e outros. Gostava de novelas e era apaixonada pelo Flamengo e pelo Nacional Futebol Clube de Manaus. Tinha como devoção São Sebastião e Nossa Senhora da Conceição. Em conversas com amigos, trazia suas lembranças dos antigos carnavais de Manaus, especialmente dos bailes do Luso Sporting Clube, Nacional Futebol Clube e Atlético Rio Negro Clube, lembrava bem dos carnavais de rua, onde os carros alegóricos eram puxados a atração animal. Era uma pessoa de uma alegria contagiante que transformou sua existência, apesar das dificuldades no prazer de viver.*

A Manaus da Época em que Viveu Maria Moreira Gomes

Se a arquitetura é o símbolo mais visível de uma sociedade, a fisionomia urbana de Manaus do período em que viveu Maria Moreira Gomes reflete bem o espírito da sociedade que aqui floresceu em fins de 1800 e início de 1900. Na verdade, a arquitetura de Manaus exprime uma atitude emocional das fortes lembranças passadas por ela e a estética do apogeu de um período do látex e da burguesia enriquecida pelo processo produtivo.

A cidade que despertou a admiração de tantos estrangeiros imigrantes ou visitantes, nas primeiras décadas de 1900, era motivo de longas prosas em que Maria travava com aqueles que lhe abordavam na esperança de relembrar a cidade que lhe serviu de berço.

De uma aldeia dos índios Manaus, o antigo Lugar da Barra se transformara num dos mais importantes centros do mundo tropical, graças à vitalidade econômica da borracha, cujo Mercado Adolpho Lisboa guardava, silenciosamente, na sua maioria permissionários de nacionalidade portuguesa.

A Maria Portuguesa como costumava ser conhecida, falava sempre com muito amor da sua Manaus de outrora e desdobrava-se em vistas múltiplas de elogios.

Outro ponto relatado por ela, era o orgulho do centro comercial regurgitando de gentes de todas as raças e fazia questão de falar do carnaval do passado, cujos carros alegóricos eram puxados à tração animal. É como se descerra-se a cortina que ocultava no anseio de seus patrícios portugueses a trabalhar, incessantemente, em busca do vil metal. Maria Portuguesa fora, inclusive, uma das primeiras mulheres a trabalhar como chofer, expressão utilizada comumente naquela época. Ela guardou na sua memória, sem sofrer modificações, tudo quanto viu e marcara com nitidez os contornos de sonhos de uma época de sua juventude.

Jornal A Notícia. Caderno Cidade. Manaus 02 de junho de 1988.

Jornal do Comércio. Caderno Cidade. 02 de junho de 1988.

Informações cedidas pelo seu neto Aryomar Surivan dos Prazeres Matos (neto de dona Maria Moreira Gomes).

Sobre o autor

Abrahim Baze é jornalista, graduado em História, especialista em ensino à distância pelo Centro Universitário UniSEB Interativo COC em Ribeirão Preto (SP). Cursou Atualização em Introdução à Museologia e Museugrafia pela Escola Brasileira de Administração Pública da Fundação Getúlio Vargas e recebeu o título de Notório Saber em História, conferido pelo Centro Universitário de Ensino Superior do Amazonas (CIESA). É âncora dos programas Literatura em Foco e Documentos da Amazônia, no canal Amazon Sat, e colunista na CBN Amazônia. É membro da Academia Amazonense de Letras e do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA), com 40 livros publicados, sendo três na Europa.

*O conteúdo é de responsabilidade do colunista

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