Flanelinhas

Sou obrigado a dirigir automóvel em vez de pedalar, porque a cidade não está à altura da civilização da bicicleta como meio de transporte seguro. Ciclista frustrado de fazer dó, motorista a contragosto, enfrento diariamente ‘meus flanelinhas’;. E olhe que no meu trabalho o carro é guardado em garagem sem flanelinhas. Mas eles existem na minha vida desde que tenho meu primeiro carro.

Detesto o serviço impingido, mas os trato com bom humor e cortesia. Bom dia, boa tarde, até logo. Se, nos coquetéis da vida, cumprimento educadamente certos super-assalariados de reputação duvidosa, como não ser cortês também com sub-empregados de reputação inequívoca – artistas da sobrevivência, na farsa do ‘Deixe que eu tomo conta’?

O primeiro sustenta a família há trinta anos, como ‘guardador’; de carros. A segunda, corre pra lá e pra cá, de gorro, suarenta e prestativa.  O terceiro, jovem, sorridente e desdentado, além de ‘administrar’; as vagas do quarteirão, presta serviços de lavagem de carro, com água semi-límpida e molambo semi-limpo – como diria seu hipotético marqueteiro. A quarta, de cabelos brancos, estende o papelão sobre o pára-brisa do meu carro e recolhe na pochete encardida o meu CPVE – contribuição permanente de vagas de estacionamento. A ocupação tornou-se unissex.

Com meu quinto flanelinha, mantenho um relacionamento diplomático antigo, fornecendo-lhe, além do real de praxe, o trocado do peixe – na Semana Santa, do milho – no São João, e as ‘festas’; de Natal. É um bom rapaz. Atua na Rua do Comercio no Parque 10, descola um almoço por semana e se faz de protetor, acompanhando quarteirão afora, quando me encontra: Pidão em demasia, cobra sistematicamente presentes e itens de consumo.

Quando posso, me escondo dele, indo estacionar bem longe. Mas aí, um concorrente seu encosta. Troquei seis por meia dúzia, ao voltar, pois geralmente somem depois de embolsar o trocado. Surpresos, agradecem e se desdobram na gesticulação do pretenso serviço de guardador e ‘peru’; de manobra. Na chegada, pergunto: ‘É você, o dono do pedaço’; ou ‘Esta calçada é a sua’. Respondem que sim.

Sempre que possível, vou a pé a banco, xerox, levar coisas para consertar, almoço com amigos. Sem carro, livro-me de encenar a interação forçada com os flanelinhas onipresentes, escapo de ouvir, a cada estacionamento, os bordões: ‘pode deixar, doutor’; e ‘tio’;. A pé, descanso um pouco da cobrança injusta dessa prestação adicional da dívida social que não contraí, com esses cidadãos desprotegidos, pelos quais já pago muitos impostos.

Agrada-me caminhar em vez de dirigir carro e assim, poder usar a rua sem o assédio de flanelinhas. Mas com muito cuidado para não tropeçar nas calçadas desniveladas, esburacadas e decoradas com titica de cachorro – outras imposições de uma sociedade destrambelhada. As reclamações ficam por conta daqueles que sem a autorização do proprietário ou motorista, jogam água e começam a limpar o para brisa do carro sem o menor consentimento.

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