Não somos seres que viemos do nada, somos um elo de uma corrente, entre nossos pais e nossos filhos
Meu pai era português. Manoel era o nome dele. Chegou ao Brasil ainda jovem, empreendeu e tornou-se um empresário de relativo sucesso. Acho que nunca foi rico, mas tinha uma boa condição. No Rio, morava em frente à praia de Copacabana, quando ali moravam as pessoas mais influentes da capital. Segundo a minha mãe, estava sempre impecável, com bons ternos e gravatas importadas. Viúvo do primeiro casamento, tinha um filho quando a conheceu. Ela era uns quinze anos mais jovem. Casaram-se e, alguns anos depois, nascemos eu e meu irmão gêmeo (quatro anos depois, ainda nasceria a minha irmã).
Poucos meses do nosso nascimento, ele quebrou. Atuava no setor de importação e exportação, e uma mudança na legislação, aliado a um desfalque do sócio, mudou tudo da noite para o dia. Fomos todos parar num quarto de pensão e, para disfarçar a vergonha de não ter o que comer, minha mãe fazia banana cozida para o meu irmão mais velho, como se fosse sobremesa de um suposto almoço feito na Espaguetelândia, um restaurante de muito prestígio na época. Na realidade, a banana cozida era o próprio almoço e era só para ele.
O baque foi tão grande que meu pai falou algumas vezes em suicídio. Um dia, já não suportando a pressão, minha mãe teria dito algo como: “Morre então. Vou para a casa dos meus pais com as crianças. Volto só à noite. Senão fizer isso hoje, não toque mais neste assunto, que eu não aguento mais“. Ao retornar, ela conta que viu o cigarro aceso no escuro. “Como defunto não fuma“, disse ela, pôde respirar aliviada. Meu pai cumpriu o ultimato e nunca mais falou em suicídio.
Alguns dias depois, retornando de uma cobrança mal sucedida a um dos seus credores, meu pai, sempre muito gentil, cedeu o seu assento no ônibus para uma mulher grávida. Seu marido era diretor de um laboratório farmacêutico. Ele nunca andava de ônibus, mas esquecera a carteira neste dia. Conversaram os dois e ele incentivou o meu pai a se candidatar a uma vaga como propagandista vendedor. Sampaio, como era conhecido, com quase 45anos, nunca tinha sido empregado, mas viu nisto uma oportunidade. Foi selecionado e iniciou um trabalho, na época muito duro, que envolvia longas viagens diárias de ônibus aos subúrbios cariocas, carregando uma pasta pesada, ao ponto de suas finas mãos sangrarem pela nova realidade.
Permaneceu nesta empresa por mais de 20 anos. A idade não o favoreceu ascender na hierarquia, mas fez muitos amigos e era admirado por toda a empresa, do porteiro ao presidente, e mesmo entre os concorrentes. Aposentou-se aos 65 anos, de longe o mais velho da equipe, com muitas homenagens. Foi estimulado a apresentar seu filho, que iniciara recentemente na profissão em outro laboratório, também encaminhado por ele. Dizia-se na época, que “filho de peixe, peixinho é“, e isto me abria as portas, então com 19anos.
Ocupei exatamente o seu cargo e fui cuidar da carteira de seus clientes. Muita responsabilidade e muito peso também. Dois anos depois, optei por mudar de empresa e, com 25 anos, ocupei a primeira função como gerente, um cargo que, no setor, as pessoas costumavam conquistar 15 ou 20 anos mais tarde. Senti de imediato que estava recebendo um tipo de herança de meu pai. Era como se ele tivesse me passado o bastão e eu continuasse a correr exatamente do ponto que ele parou. Ele plantou 20 anos e me abriu o caminho. A partir dali era comigo. Não seria fácil, mas eu não começava do nada. Existia uma herança invisível que ficava evidente em várias situações.
Na semana do Dia de Finados, quero lembrar que não somos seres que viemos do nada e que somos um elo de uma corrente, entre nossos pais e nossos filhos. Dos pais e antepassados, não herdamos apenas a raça, a cor da pele, o formato do nariz, ou coisas materiais. Há heranças invisíveis. Algumas talvez preferíssemos não receber, outras nem percebemos. Minha história me facilitou compreender o quanto isto é verdadeiro, mas todos, se buscarem, vão perceber que a sua trajetória foi preparada por quem veio antes. Isto nos ajuda a sentir gratidão e a ter consciência de cuidar do que deixaremos para quem vem depois. Obrigado, pai. Que eu possa deixar para minhas filhas e netos tão boas heranças quanto recebi.
Julio Sampaio de Andrade Mentor e Fundador do MCI – Mentoring Coaching Institute Diretor da Resultado Consultoria Autor do Livro: O Espírito do Dinheiro (Editora Ponto Vital), dentre outros Texto publicado no Portal Amazônia e no https://mcinstitute.com.br/blog/