Em dezembro do ano passado a Justiça derrubou a suspensão, mas o órgão diz que a obra se projeta como o maior desastre socioambiental das últimas décadas. A estrada ligaria o Estado ao Peru pela Serra do Divisor.
Menos de um mês depois de a Justiça derrubar a suspensão do contrato com a empresa que vai fazer o estudo de viabilidade técnica e ambiental para a construção da estrada que vai ligar o Acre ao Peru pela Serra do Divisor, no interior do Estado, o Ministério Público Federal acreano (MPF-AC) emitiu novo parecer e pede a suspensão do edital, reforçando os danos ambientais que serão causados pela obra.
O órgão reforça o que consta na ação civil pública (ACP) ajuizada por entidades e organizações da sociedade civil contra a União, o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA), para anulação de várias ilegalidades na licitação que iniciou a contratação de empresas para realizarem os projetos básico e executivo da obra. O DNIT informou que deve se posicionar quando for notificado oficialmente.
Em dezembro, o desembargador federal Francisco de Assis Betti, vice-presidente do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, derrubou a suspensão do contrato com a empresa que vai fazer o estudo de viabilidade técnica e ambiental para a obra. A nova decisão foi dada após o DNIT entrar com recurso contra decisão de primeiro grau, alegando que o contrato não se trata da construção do trecho, mas sim da elaboração de estudos e projetos para a execução das obras.
O órgão pede que os projetos sejam suspensos até que sejam feitos os estudos de viabilidade técnica e ambiental e realizada consulta prévia aos povos indígenas e comunidades tradicionais afetados pelo empreendimento. Agora, com esse novo parecer, a Justiça Federal local poderá julgar liminarmente a causa, até que o mérito do processo seja esclarecido.
‘Obra fadada ao ostracismo’
O MPF alega também que a construção pretendida da obra se projeta como o maior desastre ambiental das últimas décadas no Acre, “com o agravante de ser uma obra fadada ao ostracismo e à inutilidade”.
“O DNIT dispensou a realização de estudos ambientais, sob o fundamento de que a área está localizada em área de fronteira e é importante para a ‘segurança nacional’. Contudo, o MPF destaca que já há entendimento consolidado do Tribunal de Contas da União sobre a impossibilidade de dispensar esses estudos, porque os projetos são construídos precariamente e sem levar em conta os danos ao meio ambiente, sobretudo no Parque Nacional da Serra do Divisor, considerada uma das principais unidades de conservação do país”, destaca o órgão em nota.
Além disso, as áreas técnicas do IBAMA e do ICMbio também se manifestarem contrariamente à construção de uma estrada transfronteiriça dentro de unidade de conservação de proteção integral, onde apenas o uso indireto dos recursos naturais é admitido.
O coordenador da Organização dos Povos Indígenas do Rio Juruá (OPIRJ), Francisco Piyãko, disse que o novo parecer do MPF vem mostrar que a obra é um erro, do ponto de vista ambiental.
“Tá mais do que claro o que está sendo defendido por esse governo, esse edital do Dnit é totalmente desalinhado com as leis. Se não houvesse leis nesse país, talvez prevalecesse o que eles querem fazer, que é destruir, passar por cima de tudo, como vem tentando fazer. Ainda bem que temos um país que tem três poderes, que é pra poder garantir a sustentabilidade do direito, onde um falha, o outro corrige e não tenho dúvida que essa é uma luta, que nós, como movimento social, vamos fazer”, enfatizou.
A construção da estrada gerou, inclusive, uma postagem contra do fotógrafo Sebastião Salgado, que, em maio do ano passado, postou um texto em seu perfil oficial do Instagram afirmando que a obra era uma tragédia.
As críticas foram ilustradas com uma foto, de 2016, produzida no ensaio que Sebastião Salgado fez na Terra Indígena Ashaninka do Rio Amônia, no interior do Acre. Na imagem, Luísa, filha da liderança Moisés Piyãko Ashaninka, se pinta no espelho.
“Se construída, esta estrada, que corta o Parque Nacional da Serra do Divisor, seria um desastre para uma das regiões mais bem preservadas da Amazônia e teria consequências devastadoras para a população indígena que ali vive”, disse o fotógrafo.
Prejuízos
O parecer demonstra que haverá um enorme prejuízo econômico na execução do projeto, já que o governo peruano informou que não há interesse das pastas do meio ambiente, da cultura e da economia na construção da estrada do lado peruano. “Assim, a construção de estrada apenas do lado brasileiro, no valor estimado de R$ 500 milhões, está fadada à inutilidade e ao ostracismo”.
Diante das provas apresentadas, o MPF pede a suspensão das obras, menos da ponte que vai ligar Cruzeiro do Sul a Rodrigues Alves e que, segundo o órgão, não deve causar danos ambientais.
Indenização
Na petição, o MPF acrescentou o pedido para que a União e o DNIT sejam condenados ao pagamento solidário de danos morais coletivos no valor de R$ 6 milhões, quantia a ser revertida em projetos de recuperação ambiental no Parque Nacional da Serra do Divisor e em projetos educativos e informativos sobre o meio ambiente e a cultura indígena no Estado do Acre, elaborados com a participação direta dos povos indígenas, dos autores da ação e do MPF.
O pedido de indenização se fundamenta na autorização precária, concedida em contrariedade a acórdão do Tribunal de Contas da União, sem a realização de estudos ambientais mínimos e sem respeitar o direito à consulta livre, prévia e informada dos indígenas afetados.
Ação civil pública
A ação foi impetrada no início de dezembro pela Associação SOS Amazônia, a Organização dos Povos Indígenas do Rio Juruá, Comissão Pró-Índio do Acre, Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira e o Conselho Nacional das Populações Extrativistas na Justiça Federal do Acre contra o Dnit.
No documento, as entidades destacaram que o departamento não respeitou os ‘requisitos legais de elaboração de estudos prévios de viabilidade, de consulta prévia, livre e informada aos povos indígenas e comunidades tradicionais e, também, aos direitos dos povos em isolamento que vivem na região’ durante o processo de licitação.
O secretário-geral da SOS Amazônia, o ambientalista Miguel Scarcello, lamentou a nova decisão da Justiça e afirmou que as organizações ambientais devem recorrer da decisão.
“Deixaram de cumprir uma série de coisas preliminares fundamentais, como a consulta aos povos indígenas. Esse estudo de viabilidade técnica e econômica e ambiental precede o edital de contratação de empresa que vai fazer o projeto. Esse edital que não estamos concordando é para contratar empresa para desenhar o projeto e dar base à construção da estrada. E a gente entende que fazer isso agora já é um indicativo que vai ter estrada, e não tem justificativa social para isso”,
disse.
Outro aspecto levantado pelo ambientalista é com relação à população indígena isolada que vive na região onde deve ser construída a estrada. “No edital não tem também como o parque vai funcionar com a estrada construída, não vai poder se planejar o parque depois que a estrada estiver construída. Essas coisas todas não estão no edital e por isso entramos com a ação. É triste, porque, politicamente, a gente sabe que há um desejo enorme localmente, mas buscamos conversar com todos os atores e ninguém abriu porta. Ninguém quis sentar conosco para ouvir nossas preocupações, mesmo na audiência pública”, reclamou.
Obra na BR-364
Em novembro de 2019, foi dado início ao trabalho com a abertura de uma trilha de cerca de 90 quilômetros até o município peruano de Puccalpa. Na época, segundo informou a Secretaria de Infraestrutura e do Desenvolvimento Urbano (Seinfra), a ação era de abertura da trilha e levantamento topográfico no trecho que vai desde o final do Ramal do Feijão Insosso, em Mâncio Lima, até o Rio Azul.
Em outubro, uma audiência pública feita pela Assembleia Legislativa do Acre (Aleac), no Teatro dos Náuas, em Cruzeiro do Sul, no interior do estado, colocou em discussão mais uma vez a construção da estrada que liga o Acre ao Peru, pelo Parque Nacional da Serra do Divisor, no Vale do Juruá.
O encontro que foi proposto pelo deputado estadual Roberto Duarte (MDB) e contou com a participação de deputados federais, estaduais, representante do Ministério Público Estadual (MP-AC), líderes ambientais, indígenas, professores, vereadores e comerciantes da região.
Representando seu povo que fica próximo à Serra do Divisor, Maria Valdenice Nukini disse que os indígenas são contra a obra.
“Vai mudar nosso modo de vida, vai haver poluição, tanto no ar, no solo e na água. Vai mudar nosso modo de viver, vai destruir algo que protegemos há anos”,
afirmou.
Além da audiência pública e do início da abertura da estrada, também tramita na Câmara dos deputados o projeto de lei 6.024, apresentado pela deputada federal Mara Rocha (PSDB-AC), que tira a proteção integral da Serra do Divisor.
Atualmente, o projeto tramita na Câmara dos Deputados e está guardando parecer do relator na Comissão de Integração Nacional, Desenvolvimento Regional e da Amazônia (Cindra).
O PL é de autoria do senador Márcio Bittar (MDB-AC) e foi apresentado pela deputada federal Mara Rocha (PSDB) em novembro de 2019. Ele ficou parado durante todo o ano de 2020 e os três primeiros meses de 2021. Até que no último dia 31 de março foi designado relator e ele foi retomado.
*Por Tácita Muniz