Troca de cartas em Tupi entre indígenas do século XVII conta detalhes sobre a Insurreição Pernambucana

Traduzidos pelo professor Eduardo Navarro, onde analisou 6 cartas trocadas entre indígenas no anos de 1645

O professor Eduardo Navarro, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, especialista em tupi antigo e em literatura do Brasil colonial, mostra uma dessas exceções. Navarro pesquisou seis 6 cartas trocadas entre indígenas em 1645, os únicos textos conhecidos que os próprios indígenas escreveram em tupi nos tempos coloniais. Essas cartas estão guardadas nos arquivos da Real Biblioteca de Haia, na Holanda, e detalham uma guerra religiosa travada entre portugueses e holandeses, com a presença de indígenas em cada lado, conhecida como Insurreição Pernambucana (1645-1654).

O professor explica que essas seis cartas pertenciam ao arquivo da Companhia das Índias Ocidentais, uma empresa de comércio com capitais privados e também capitais do Estado holandês. Essa companhia organizou uma invasão do Nordeste brasileiro em 1625, que não foi bem-sucedida. Os integrantes da companhia voltaram para o país europeu com alguns indígenas a bordo, entre eles os caciques Pedro Poti e Antônio Paraopeba. Na Holanda, os caciques foram convertidos ao protestantismo calvinista. Cinco anos depois, houve outra tentativa de invadir a costa do Nordeste. E dessa vez deu certo, principalmente, em Pernambuco, onde os holandeses permaneceram por 24 anos, desde 1630 até 1654.

Ele relata que, em 1645, fazia 5 anos que Portugal tinha saído do domínio espanhol e, para firmar sua independência, era necessário obter apoio dos holandeses. Essa aliança foi consolidada pelo padre Antônio Vieira, que também era diplomata. Ele escreveu o plano Papel Forte, que consistia em entregar o Nordeste brasileiro em troca de apoio político. Já os senhores de engenho não queriam a presença dos holandeses, pois muitos estavam endividados com a Companhia das Índias Ocidentais. Queriam que os holandeses fossem embora, para não pagar suas dívidas. Nesse período, o conde Maurício de Nassau foi quem administrou Pernambuco e conseguiu apaziguar os conflitos religiosos e dos senhores de engenho. Ele criou um ambiente de tolerância religiosa, numa época em que em território português era obrigatório o catolicismo e as outras religiões eram consideradas heresia.

Quando Nassau voltou para a Europa, em 1644, começaram a acontecer conflitos religiosos. Jacob Rabbi, um alemão a serviço do governo holandês, provocou um massacre em Cunhaú, no Rio Grande do Norte. As portas da Igreja de Nossa Senhora das Candeias foram trancadas e dezenas de fiéis foram mortos. Esse foi o estopim para a Insurreição Pernambucana.

Carta de Felipe Camarão a Pedro Poti, de 19 de agosto de 1645 . Foto: Arquivo de Eduardo Navarro

 Navarro descreve que, do lado holandês, ficaram Pedro Poti e Antônio Paraopeba, indígenas protestantes, e, do lado português, Felipe Camarão, indígena católico, que pedia a seus parentes Poti e Paraopeba que voltassem para o lado português. “Esses pedidos estão nas cartas, todas de 1645: a primeira é de agosto e as últimas são de outubro. Foram preservadas seis cartas, mas imagino que deve haver mais”, destaca o professor. Ele conta que a primeira carta de que há registro é de Felipe Camarão, pedindo para que Pedro Poti deixasse os holandeses, sob a alegação de que eram hereges e “estão no fogo do diabo”. Camarão escrevia que os indígenas precisavam se unir, pois eram do mesmo sangue e não podiam se matar daquela maneira. A resposta do Poti é conhecida através de um resumo em holandês feito por um pastor holandês. “Poti respondeu que não havia motivo para apoiar os portugueses, já que eles só fizeram mal para seu povo: escravizaram e praticaram violência contra os potiguaras. Uma crítica bem contundente”, ressalta Navarro. Diferentes dos holandeses, os portugueses não preservaram as cartas dos indígenas, entre elas a resposta de Poti. “Por isso só é possível ver as cartas que os holandeses receberam”, lamenta o professor.

O conteúdo das cartas é constituído por textos sobre indígenas que desejam que seus parentes se unam, que abandonem as suas posições na guerra e parem de matar os seus parentes. Há comentários em que eles pedem que suas antigas tradições sejam revigoradas. Por meio das cartas, obtêm-se também informações mais específicas, como os nomes dos caciques que morreram na guerra e os lugares em que eles lutaram.

Pelo fato de as cartas serem escritas pelos próprios indígenas, é curioso observar como era a língua efetivamente falada e usada por eles, de acordo com Navarro. Assim, as cartas também são consideradas provas de que os missionários descreveram a língua corretamente. De acordo com o professor, há estudiosos que dizem que os missionários jesuítas teriam adaptado a língua aos seus interesses. Entretanto, não foi isso o que aconteceu. “As cartas comprovam que missionários escreveram exatamente aquilo que os indígenas falavam.”

Carta de de Felipe Camarão a Antônio Paraopeba, de 4 de outubro de 1645. Foto: Arquivo de Eduardo Navarro

Antes de Navarro, houve algumas tentativas de traduções das cartas. Uma delas foi feita pelo engenheiro Teodoro Sampaio, que recebeu as cartas pelo historiador José Hygino Duarte Pereira, que foi quem as descobriu, em 1885. O engenheiro confessa, em seu artigo Cartas tupis dos Camarões (1908), que até conseguia reconhecer o assunto das cartas, mas não conseguia traduzi-las efetivamente. Eram “verdadeiros mistérios”. Ninguém mais tentou traduzi-las até a década de 1990, quando o professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Aryon Rodrigues foi à Holanda buscar essas cartas. Não conseguiu traduzi-las e mostrou para Navarro. “Eu pedi para a biblioteca na Holanda e elas chegaram em microfilmes. E percebi que ninguém conseguia traduzi-las porque não havia dicionário em tupi antigo. Eu tive que elaborar um dicionário para depois traduzir as cartas”, explica Navarro. Após publicar Dicionário de Tupi Antigo: a Língua Indígena Clássica do Brasil (2013), Navarro começou a analisar as seis cartas de forma mais intensa.

A pesquisa do professor será publicada no Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, de Belém, no Pará.

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