Histórico: Uepa forma primeira quilombola como Mestra em Educação

A pesquisa de Suely, defendeu a resistência por meio da palavra dita e os processos educacionais da tradição oral no quilombo Vila União/Campina, em Salvaterra, no Pará.

“Saudando a força de todos os quilombolas que lutavam bravamente para manter viva a nossa história”. Com os versos da canção Negro de Luz, do Ilê Aiyê, Shirley Amador iniciou a fala na banca de defesa. Neste semestre, apesar da pandemia, a Universidade do Estado do Pará (Uepa) formou a primeira mestra quilombola, no Programa de Pós-graduação em Educação (PPGED), do Centro de Ciências Sociais e Educação (CCSE). Defendendo a resistência por meio da palavra dita e os processos educacionais da tradição oral no quilombo, ela propõe a reflexão acerca deste que é o principal instrumento de luta nestas comunidades rotineiramente invisibilizadas pela história oficial do Brasil.

Mestra Shirley Amador. (Foto:Divulgação/UEPA)

A influencia direta da mãe, ativista negra e militante do movimento quilombola, e a atuação da matriarca dentro e fora da comunidade Vila União/Campina, em Salvaterra, foram a inspiração para que Shirley percebesse o valor da educação para promover mudanças.

“Educar as novas gerações nestas bases significa buscar a dignidade, o exercício do pertencimento étnico que respalda a diversidade da memória histórica, social, e a luta pela conquista de direitos diante da situação de negação e de enfoques para aplicação de novas políticas, identidade social e cultural para os povos e comunidades tradicionais”, avalia. 

Pesquisa de campo da mestra Shirley Amador. (Foto:Divulgação/UEPA)

“Para nós, a Educação é um instrumento de luta. Precisamos ocupar os espaços para sermos ouvidos, para termos os nossos direitos reconhecidos”. Para fomentar isso, ela desenvolve na Vila União/Campina um projeto de cursinho preparatório para vestibulandos quilombolas locais.

O espaço acadêmico foi o escolhido por ela, por perceber a necessidade de pesquisas que observem cientificamente os fenômenos educacionais contidos nas comunidades e os socializem com toda a academia.

“Esses processos educativos ocorrem no cotidiano, na medida em que os filhos dos quilombolas aprendem os saberes que são necessários para a existência, em relação aos conflitos, a tudo aquilo que a comunidade vivencia. Então, todos esses saberes circulam nos diversos espaços ali na comunidade. A educação é um processo muito mais amplo do que aquele que está dentro dos espaços institucionalizados como escola. Então, a tradição oral foi como eu aprendi e esse saber é significativo para todos nós”, resume.

O conhecimento sobre a agricultura é um dos saberes desenvolvidos, aperfeiçoados e passados de geração a geração oralmente e possibilita a subsistência da comunidade. Histórias sobre a chegada dos antepassados à Amazônia também se perpetuam graças a este costume.

Por meio da oralidade, a cultura se interliga aos processos de ensinar e aprender desenvolvidos nas relações sociais. Eles preparam e orientam os quilombolas para a vida e a resistência. Isso possibilita a reconstrução da ancestralidade na contemporaneidade na medida em que os filhos dos quilombos aprendem e reproduzem os conhecimentos tradicionais, que dão significado para a existência da comunidade.

“Os saberes tradicionais e acadêmicos se completam, mas os tradicionais não constam nos currículos escolares e demais ambientes institucionalizados. Por isso, eles precisam ser incluídos nas práticas pedagógicas dos educadores. Por exemplo, o diálogo acerca da consciência negra costuma estar atrelado às datas comemorativas, mas eles devem ser levantados em diversas outras ocasiões cotidianas do ensino. Por que só discutir o negro no Mês da Consciência Negra?”, questiona.

Pesquisa de campo da mestra Shirley Amador. (Foto:Divulgação/UEPA)

Shirley estende o debate para a necessidade de inclusão de fatos sobre os conflitos de terras enfrentados pelos quilombolas nos últimos séculos no Brasil. “As comunidades vivenciam inúmeros conflitos, que vão desde a instalação dos grandes projetos, do desmatamento, das queimadas, da venda de terra, a retirada de madeira ilegal, até as ameaças que muitos líderes quilombolas sofrem. Isso é algo recorrente na história das populações quilombolas. São saberes notórios dentro das comunidades e deveriam ser conhecidos por todos os brasileiros”, pontua. Para ela, não seria uma questão de corrigir ou retirar fatos históricos que constam atualmente nos currículos escolares, mas de apresentar os demais pontos de vista e traçar um diálogo entre eles.

Primeira mestra quilombola

Shirley Amador se tornou, em setembro deste ano, a primeira mestra quilombola da Uepa, fato que foi motivo de orgulho para o orientador, professor doutor João Colares.

“Fico feliz por ela ser titulada pelo PPGED da Uepa. Isso demonstra que o Programa está avançando do ponto de vista das discussões sobre Educação Quilombola, Educação Indígena, ou seja, educação daquelas pessoas que historicamente foram e são subalternizadas pelos processos sociais injustos e pelas desigualdades educacionais. Então é um sentimento de alegria e é um sentimento também de uma luta”, resume o professor, que espera que a partir de agora ela possa contribuir para os processos educacionais na própria comunidade e, de maneira mais ampla, para a educação quilombola, no estado do Pará e na Amazônia.

Para ele, a alegria vem com a percepção de que o caminho à frente ainda é longo.

“Nós precisamos avançar muito ainda, nas universidades em geral e na Uepa em particular, com ações afirmativas para que esses grupos sociais que estão fora da universidade possam ingressar e, desse modo, apresentar as suas sabedorias, epistemologias, suas tradições e o seu rico conjunto de conhecimentos”, reconhece Colares, que relembra a perspectiva de diálogo entre saberes, proposta por Paulo Freire.

“Um diálogo entre essas distintas formas de conhecimento só vai se dar na medida em que essas populações que estão historicamente excluídas estiverem na universidade produzindo seus conhecimentos científicos a partir de um diálogo com as tradições, com as memórias, com as sabedorias, emergentes, insurgentes de suas próprias comunidades. É nesse sentido que nós precisamos avançar em políticas de ações afirmativas”, conclui.

A felicidade em fazer história na Uepa é algo que Shirley faz questão de dividir com toda a comunidade e professores. “Penso que essa não é uma conquista individual, mas sim coletiva, pois no decorrer do caminho nós vamos formando uma rede que nos faz prosseguir rumo aos nossos objetivos. Então essa foi uma maneira de me posicionar enquanto sujeito ético, político, de transcender também o lugar que sempre fora destinada aos negros”, comemora. 

A abertura de cotas raciais na Instituição também é um desejo da mestra, pois abrirá caminho a mais quilombolas nas diversas esferas da educação superior.

A defesa completa da dissertação pode ser vista aqui. Confira:

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