“Thiago de Mello, um caboclo comum, igual em cor, jeito e idiossincrasia típica dos que aqui nascemos.”
Amadeu Thiago de Mello, nasceu em Porantim do Bom Socorro, município de Barreirinha, no Estado do Amazonas, no dia 30 de março de 1926. Seu aniversário de 94 anos, sofridos, vividos com altivez, coragem, arte, talento e invejável visão de mundo, foi celebrado em Manaus com a discrição com que o poeta pauta seus outonais dias de vida.
Thiago, em 1931, ainda criança, muda-se com a família para Manaus, onde inicia seus estudos no Grupo Escolar Barão do Rio Branco e depois, no Gymnasio Amazonense Pedro II.Com o objetivo maior de ganhar o mundo, transfere-se para o Rio de Janeiro, onde, em 1946 ingressa na Faculdade Nacional de Medicina, curso que interrompe em caráter definitivo, para, corajosa e desprendidamente seguir a carreira literária.
De acordo com Dilva Frazão, do Portal e-Biografia, o amadurecimento permite ao poeta mergulhar profundamente as raízes da sensibilidade e da consciência crítica na rica seiva humana do povo brasileiro, ao mesmo tempo tão explorado, tão sofrido e tão generoso. Sua poesia, sem perder o sóbrio lirismo que a inflama, ganha densidade e concentração, pondo-se por inteiro a serviço de relevantes causas sociais.
Seguindo trilhas definidas por suas escolhas, Thiago de Mello passa por fases sombrias e borrascosas, realçada por prisão e longo e doloroso exílio da pátria a que tanto ama e serve. Foi preso durante a ditadura (1964-1985), exilou-se no Chile, encontrando em Pablo Neruda (1904-1973) um amigo e parceiro de intensa produção poética. Um traduziu a obra do outro e Neruda escreveu ensaios sobre o amigo.
Importantes registros da convivência dos dois poetas podem ser vistos na biblioteca da Casa de Pablo, La Chascona, em Santiago do Chile.
O lado amargo da vida
Thiago enfrentou muitas provações naqueles tempos sombrios, sobretudo decorrentes de inevitáveis choques políticos com que se debate diante das ditaduras no Brasil e no Chile. Com serena firmeza de quem as sabe inevitáveis e delas não foge, contudo, as adversidades enriqueceram-no ainda mais como poeta e ser humano.
No exílio, morou na Argentina, Chile, Portugal, França, Alemanha. Com o fim do regime militar, voltou à sua cidade natal, Barreirinha. O poeta vive hoje dividido entre sua terra de nascimento e Manaus, onde tem vida discreta ao lado da família.
Adido Cultural
Em 1957, Thiago de Mello foi convidado para dirigir o Departamento Cultural da Prefeitura do Rio de Janeiro. Entre 1959 e 1960 foi adido cultural na Bolívia e no Peru. Em 1960 publicou “Canto Geral”. Entre os anos de 1961 e 1964 foi adido cultural em Santiago, no Chile, onde conhece o escritor Pablo Neruda, de quem faz a tradução de uma antologia poética.
Thiago volta ao Brasil, à sua terra, Barreirinha, e à Manaus após retorno do exílio beneficiado pela Lei da Anistia, promulgada pelo presidente João Batista de Figueiredo, o última do regime militar, em 1979.
Primeiros Poemas
Em 1947, Thiago de Mello publicou seu primeiro volume de poemas, “Coração da Terra”. Em 1950 publicou seu poema “Tenso Por Meus Olhos”, na primeira página do Suplemento Literário do Jornal Correio da Manhã. Em 1951 publicou “Silêncio e Palavra”, que foi muito bem acolhido pela crítica. Em seguida publicou: “Narciso Cego” (1952) e “A Lenda da Rosa” em (1957).
Estatuto do Homem e Faz escuro mas eu canto
Logo depois do golpe militar de 1964, Thiago renunciou ao posto de adido cultural e em 1965 foi residir no Rio de Janeiro. Sua poesia ganhou forte conteúdo político e Indignado com o Ato Institucional nº. 1 e por ver a tortura ser empregada como método de interrogatório, escreveu o seu poema mais famoso,”Os Estatutos do Homem” (1964), do qual destaco os três artigos a seguir:
Artigo I
Fica decretado que agora vale a verdade.
agora vale a vida,
e de mãos dadas,
marcharemos todos pela vida verdadeira.
Artigo III
Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança.
Artigo Final
Fica proibido o uso da palavra liberdade.
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.
Faz escuro mas eu canto (1968), um canto de liberdade:
Faz escuro, mas eu canto,
porque a manhã vai chegar.
Vem ver comigo, companheiro,
a cor do mundo mudar.
Vale a pena não dormir para esperar
a cor do mundo mudar.
Já é madrugada,
vem o sol, quero alegria,
que é para esquecer o que eu sofria.
Quem sofre fica acordado
defendendo o coração.
Vamos juntos, multidão,
trabalhar pela alegria,
amanhã é um novo dia. ()
Poesia e ciência, ciência e poesia
Thiago de Mello é uma dessas figuras humanas extraordinárias. Magnetiza audiências onde quer que se apresente, a ponto de não se ouvir qualquer ruído enquanto fala. Até as folhas das árvores cessam seu farfalhar, pois os ventos, ante ele, intimidados, param de soprar durante aqueles momentos de puro fascínio com que modela sua fala.
Ouvir o poeta, de linguagem e entonação de voz bem características do caboclo do Baixo Amazonas, é, acima de tudo, um grande privilégio. Uma oportunidade de absorver conhecimentos e verdades irretorquíveis que brotam de uma alma que, embora forte e definitivamente ligada à sua Barreirinha, no interior do nosso Amazonas, esquadrinha o mundo, sem cessar, ensinando e aprendendo.
Thiago de Mello, um caboclo comum, igual em cor, jeito e idiossincrasia típica dos que aqui nascemos, ao que penso faz parte de uma classe de personalidades excepcionais que, dotados de luz própria, inteligência excepcional, visão do porvir e talento, conduzem a história da humanidade: Confúcio, Jesus, Platão, Cícero, Rousseau, John Kennedy, Einstein, Spinoza, Voltaire, Adam Smith, Marx e Engels, Freud, Tolstoi, Neruda, Drummond,Machado, Joyce, Jorge Amado, dentre outras figuras revolucionárias do pensamento mundial.
Numa conferência perante o Grupo de Estudos Estratégicos Amazônicos – GEEA/INPA, do qual sou membro, em determinado momento deu um puxão de orelha nos cientistas, ao afirmar que “o Inpa precisa de uma interação maior com a sociedade”. Certamente, quis insinuar à Universidade e à Embrapa sobre a necessidade de “repartir conhecimentos em benefício da humanidade e da própria região”.
O poeta ainda ensinou que “a filosofia, como a poesia, são os maiores instigadores da ciência e de sua derivada, a tecnologia”. Quando alguém, alhures, indagou-lhe se a poesia podia salvar o mundo, ele respondeu, sem hesitar: “o mundo eu não sei, mas pode salvar você”.
Thiago por Neruda
Ao expressar, em 1965, seus sentimentos sobre o amigo, Pablo Neruda, em cuja companhia, muitas vezes acrescida de Jorge Amado e Zélia levam sua arte e visão de mundo a praticamente todo o Planeta, assim define o poeta de Barreirinha, segundo trecho transcrito pela Editora Bertrand na orelha de seu livro Campo de Milagres, de 1998:
“Thiago de Mello es un transformador del alma. De cerca o de lejos, de frente o de perfil, por contacto o transparencia, Thiago ha combinado nuestras vidas, nos ha dado la seguridad de la alegria. El tiempo y Thiago de Mello trabajan en sentido contrario.El tiempo erosiona y continúa. Thiago de Mello nos aumenta, nos agrega, nos hace florear y luego se va, tiene otros quehaceres. El tiempo se adhiere a nuestra piel para gastarnos. Thiago pasa por nuestras almas para invitarnos a vivir”.
Thiago por Thiago
Na obra Amazonas Pátria das Águas, 1987,na qual exibe toda a força de sua ligação telúrica com a Amazônia, Thiago de Mello se auto-define logo no primeiro verso do livro-poema:
Filho da floresta, água e madeira
Vão na luz dos meus olhos
e explicam este jeito meu de amar as estrelas
e de carregar nos ombros a esperança.
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Osíris M. Araújo da Silva é economista, escritor, membro do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA), da Academia de Letras, Ciências e Artes do Amazonas (ALCEAR), do Grupo de Estudos Estratégicos Amazônicos (GEEA/INPA) e do Conselho Regional de Economia do Amazonas (CORECON-AM).
*Artigo publicado na Revista Reflexos do Universo No. 99 – Edição Abril/Maio 2020 – Cruz das Almas, Bahia.