A tragédia da expedição do padre Calleri: missão se transforma em massacre

Apesar da expedição do padre Calleri ter sido cuidadosamente planejada, o desfecho se tornou uma das grandes tragédias da região.

Foto: Reprodução/ISA

“Ainda não posso acreditar como saí vivo desta aventura”

Com essas palavras, o mateiro Álvaro Paulo da Silva, conhecido como Mineiro Alto, resumiu o desfecho da tragédia que se tornou a expedição liderada pelo padre João Calleri em outubro de 1968, na floresta amazônica. Álvaro foi o único sobrevivente da missão que visava o contato pacífico com os indígenas Atroaris, grupo indígena isolado que ocupava as terras entre o rio Branco e os limites com a então Guiana Inglesa, hoje República da Guiana.

A jornada, embalada pela promessa da integração nacional e pelo avanço da BR-174, envolveu órgãos como a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), o Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER), o Ministério da Aeronáutica e a Prelazia de Roraima.

Inspirada por Altamiro Veríssimo da Silveira, então chefe do 1º Distrito Rodoviário Federal, a expedição contava com nove integrantes,entre mateiros, técnicos e missionários, e partiu com o objetivo de conquistar a confiança dos silvícolas e afastá-los da área de influência da rodovia.

No entanto, a promessa de aproximação se transformou em uma das maiores tragédias envolvendo o contato entre indígenas e não indígenas na Amazônia brasileira.

📲 Confira o canal do Portal Amazônia no WhatsApp

O plano e os primeiros encontros

De acordo com um texto publicado no Instituto Durango Duardo (IDD), a expedição de Calleri foi cuidadosamente planejada. Além de armamentos e mantimentos, o grupo levava presentes como facões, fósforos, anzóis e utensílios domésticos, objetos destinados a estabelecer relações amistosas com os atroaris.

Dois grupos foram formados no trajeto: um permaneceu na chamada Maloca Queimada, enquanto outro, liderado pelo próprio padre, seguiu adentrando a floresta.

Nos primeiros dias de contato, os sinais eram positivos. As trocas culturais aconteciam, os indígenas colaboravam com a montagem do acampamento, e o cacique Maruaga demonstrava abertura ao diálogo. Mas a cordialidade inicial cedeu espaço a tensões crescentes. Gesticulações agressivas, silêncio desconfiado e o recuo dos indígenas deram início ao clima de hostilidade.

Um incidente pontual pode ter acirrado os ânimos: Calleri teria advertido um índio por remexer em utensílios do acampamento, utilizando o termo “maripanã”, que os indígenas associam a “arma de fogo”. O gesto foi interpretado como uma ameaça.

Confira uma matéria sobre a tragédia na época:

A ruptura e o silêncio da mata

Sentindo que o ambiente se tornava cada vez mais perigoso, o mateiro Álvaro pediu permissão para deixar o acampamento. O padre autorizou sua saída no dia 31 de outubro. Segundo o relato de Álvaro, ele partiu levando uma espingarda, um cachorro, algumas conservas e farinha.

Dias depois, ao passar pelas proximidades da Maloca da Esperança, avistou dois corpos. Fugiu pela mata, construiu uma jangada e foi resgatado por caçadores e geólogos. Suas declarações à Força Aérea Brasileira impulsionaram as buscas.

No entanto, seu testemunho foi inicialmente recebido com desconfiança. Um rádio entregue anteriormente por Calleri a um colega de missão relatava que o mateiro havia fugido no dia 28, três dias antes do que ele afirmava. Havia ainda dúvidas sobre como ele teria construído sozinho uma jangada e conseguido sobreviver à selva por tantos dias.

Leia também: Jonestown: relembre a história de um dos maiores massacres na Amazônia Internacional

As dúvidas começaram a se dissipar no final de novembro, quando equipes encontraram vestígios do acampamento: objetos pessoais, remédios, ferramentas e alimentação deteriorada. Dias depois, os primeiros ossos foram encontrados. Restos mortais de oito pessoas, entre eles o crânio do padre Calleri, estavam espalhados em diferentes pontos da clareira.

A análise dos corpos revelou as cenas brutais da tragédia: crânios esmagados por trás, mãos amarradas com cipós, perfurações por flechas e costelas fraturadas. Tudo indicava que os membros da expedição haviam sido mortos a golpes de borduna, facão e flechas. A estratégia dos atroaris teria sido eliminar o grupo aos poucos, com calma e método.

A tragédia da expedição do padre Calleri: missão se transforma em massacre
Equipe encontra as ossadas. E na outra imagem, um dos possíveis assassinos. Foto: Reprodução/ISA

Lições e omissões

A tragédia gerou uma onda de comoção nacional e debate sobre a política indigenista da época. Muitos apontaram falhas graves na condução da expedição: desde a ausência de apoio militar na floresta até a estratégia de lidar com os indígenas.

O Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER) e a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI) foram criticados por delegar ao padre Calleri plenos poderes sem prever mecanismos de apoio ou segurança.

Especialistas argumentam que o padre, embora experiente e idealista, falhou ao lidar com a complexidade cultural dos atroaris. Acostumados a receber presentes sem contrapartidas, os indígenas teriam se revoltado diante da política de “troca justa” imposta pela missão.

A BR-174, cuja construção foi suspensa durante a expedição, já avançava na região com 180 km desmatados e 300 operários atuando. O avanço da estrada, sem um plano de proteção aos povos isolados, foi visto como uma ameaça direta ao modo de vida dos atroaris.

Imagens de algumas vítimas. Foto: Reprodução/IDD

O legado de Calleri

O padre João Calleri era uma figura respeitada na Igreja e na Comissão Pró-Índio da Prelazia de Roraima. Tinha como princípio que “índio não se pacifica, apenas se aproxima para evitar choques”. Sonhava ser missionário na África, mas encontrou na Amazônia seu destino final. Na contracapa de um de seus livros de cabeceira, ‘Canto do Amor na Floresta’, anotou: “Este é um homem que deve ser seguido até o fim”.

A última mensagem enviada por ele resume a tensão vivida nos últimos dias da expedição:

“Com extrema facilidade passam do sorriso aos gestos mais violentos para nos perturbar… A realidade é muito difícil. Aqui a boa vontade, a união e serenidade de toda a equipe é maravilhosa. Saudações, Pe. Calleri”.

O massacre da expedição do padre Calleri é um marco na história da política indigenista brasileira, um alerta sobre os perigos da arrogância civilizatória e da ausência de diálogo intercultural. Nas palavras do antropólogo Darci Ribeiro: “Na perspectiva de um índio, nós somos a tribo feroz.”

*Com informações do Instituto Durango Duarte

Publicidade
Publicidade

Relacionadas:

Mais acessadas:

Comissão de Direitos Humanos aprova criação da Política Nacional de Segurança dos Povos Indígenas

A proposta reafirma competências de vários órgãos de Estado relacionadas ao combate à violência contra os povos indígenas.

Leia também

Publicidade