‘Reunir forças’, Davi Kopenawa celebra união entre povo Yanomami e cultura negra em desfile da Salgueiro

Liderança Yanomami desfila com a escola de samba na Marquês de Sapucaí. Salgueiro levará samba-enredo “Hutukara”, inspirado na luta e obra do xamã.

“Preparado para mostrarmos nossa alma Yanomami e a alma do povo negro”, disse, animado, o líder indígena e xamã Davi Kopenawa sobre a expectativa para participar do desfile da Acadêmicos do Salgueiro no carnaval do Rio de Janeiro, considerado o “maior espetáculo da Terra”. Inspirada na obra de Kopenawa, a escola de samba leva a luta em defesa da Amazônia e a cultura Yanomami à Marquês de Sapucaí neste domingo (11).

Com o samba-enredo “Hutukara” – que significa a terra-floresta surgida após a queda do primeiro céu nos tempos ancestrais – a Salgueiro ecoa um grito de alerta em nome do povo Yanomami: “Ya temi xoa!” (ainda estamos vivos!). A escola entra na avenida entre 0h e 0h20 da madrugada de domingo para segunda-feira (12).

Davi Kopenawa, reconhecido internacionalmente pela luta em defesa do povo Yanomami, e os outros 14 indígenas Yanomami vão desfilar na avenida junto com a Salgueiro. Em entrevista, o xamã se disse tranquilo e animado em participar da festa no Sambódromo do Rio, que tem capacidade para receber cerca de 80 mil foliões e será transmitida ao vivo.

Davi Kopenawa desfilará com a Acadêmicos do Salgueiro, no desfile das Escolas de Samba do Rio de Janeiro. Foto: Landau/ISA

“Nós vamos fazer o homem branco, que mora na cidade, abrir o olho para enxergar nossa imagem, a nossa alma, nossa alma de indígena, alma de pessoa, alma do homem da floresta. Então, eu estou preparado para mostrarmos a nossa alma Yanomami e a alma do povo negro”,

disse.

O samba-enredo da Salgueiro foi elogiado pelo ator americano Leonardo Dicaprio, conhecido pela atuação em defesa do meio ambiente. “O desfile é dedicado à defesa dos Yanomami. Em meio a essa tragédia, os brasileiros convidam o mundo a se unir e celebrar a riqueza da cultura Yanomami e sua capacidade de resistência”, disse ele em um post nas redes sociais.

“O carnaval da Salgueiro foi criado por eles, mas nós temos o nosso canto, que é parecido, a nossa festa da comunidade. Isso é muito forte”, reforçou Kopenawa. 

Davi Kopenawa em visita à Acadêmicos do Salgueiro, em Andaraí, Rio de Janeiro. Foto: Landau/ISA

Davi Kopenawa avalia que principal objetivo do espetáculo é o de reunir forças com a cultura negra, compartilhar a sabedoria do povo Yanomami com o mundo, e, com isso, mostrar os caminhos para uma realidade melhor para todos, de respeito e aprendizado sobre o universo. O carnavalesco responsável pela festa da Salgueiro é Edson Pereira. 

‘Lutar juntos’ 

Ainda em Boa Vista, prestes a viajar para o Rio de Janeiro, Davi celebrou a homenagem, e agora, chama a escola de samba de “povo Salgueiro”. Para ele, a escolha do samba-enredo, construído pelo enredista Igor Ricardo a partir do livro “A Queda do Céu”, de autoria do xamã, é um sinal do reconhecimento do “povo da floresta” no Brasil – o que demorou a acontecer na visão dele. 

Davi Kopenawa às vésperas do desfile das Escolas de Samba do Rio de Janeiro. Foto: Evilene Paixão/Hutukara

“Eu já conhecia o Carnaval, mas a Salgueiro eu não conhecia, onde eles moram, no Rio de Janeiro. Foi muito bom, pois encontrei a união. Eles são povo negro, que veio trazido pelo homem branco. Já escutei história deles. O homem branco os tratava mal, batia neles. Nós, do povo Yanomami, como povo brasileiro, indígena, o homem branco também não gosta. O homem branco, que vem de longe, não gosta de nós. Então foi bom, demorou, mas, foi bom encontrar (com eles)”, disse.

Em outubro do ano passado, Davi visitou a quadra da escola vermelha e branca, localizada em Andaraí, na Zona Norte do Rio de Janeiro. No local, selou de vez a parceria com a comunidade ao conversar com os responsáveis pelo espetáculo e presenciar a escolha da letra do samba-enredo “Hutukara”. 

“Foi muito bom. Encontramos o homem negro, que sofria primeiro. Quinhentos anos se passaram em que eles sofriam muito. O meu pensamento é de que eu precisava encontrar quem sofreu primeiro, para fazermos uma aliança, para fazer força, unidos, para lutar juntos, em nome do meu povo Yanomami e Ye’kuana”,

ressaltou o líder.

Davi Kopenawa posa para foto com a bateria da Acadêmicos do Salgueiro. Foto: Landau/ISA

Na casa da Salgueiro, Davi afirma que foi bem recebido e expressou o desejo por um dia mostrar a eles a casa do povo Yanomami. Ainda durante a visita, o líder indígena entrou em contato direto com a cultura negra e os modos de vida da população do Morro da Salgueiro. Ele se disse espantado com as condições em que o povo – o qual chamou de “irmãos e amigos da gente” – vive na comunidade.

“Eu não quis chorar, me senti forte para abraçar a alma do pessoal que está naquele lugar tão difícil de sair, sem lugar para caçar, para pescar, sem roçado. Não tem nada de criação de boi, criação de peixe, não tem nada. Eu fiquei com um pensamento forte, pensei na grande Pata Omama, que nos criou. Eu os considero irmãos, amigos”, reforçou.

Davi contou que ficou emocionado ao ser apresentado à cultura e história do local por meio das “guardiãs”, com quem o líder pôde trocar experiências e saberes ancestrais. As mulheres, segundo ele, o fizeram lembrar de uma parente, mais especificamente uma tia, que “cantava dançando, assim como elas”. 

Davi Kopenawa compartilhou saberes com guardiãs da cultura afro-brasileira no Morro da Salgueiro. Foto: Landau/ISA

Parentes de Davi também desembarcam no Rio de Janeiro neste sábado junto com o xamã para desfilar na avenida. A comitiva dos “amigos da floresta” pretende somar forças na luta pela sobrevivência dos povos.

Animado para o desfile, com o intuito de promover o respeito, o líder afirma que pretende expor elementos da cultura yanomami para expandir a visão do “homem da cidade”, que segundo ele, é limitada e está acostumada a enxergar apenas um modo de vida. 

A Salgueiro e os Yanomami 

Os primeiros contatos de Kopenawa com a escola de samba ocorreram ainda em março de 2023, quando o título do enredo foi escolhido. Davi conta que permitiu que a história de seu povo fosse representada a partir da obra dele pois viu uma possibilidade de unir a sabedoria do povo Yanomami, com a do povo negro, que compartilha de lutas contra ameaças semelhantes. 

Davi Kopenawa se diz animado para desfilar com a Salgueiro no Carnaval do Rio. Foto: Landau/ISA

“Os Yanomami vão também para ajudar o homem negro, pois eles sofrem igual nós, o homem branco ataca nós. Então foi muito bom, para nós levantar, fazer força, contra capitalista, contra o homem que gosta de mercadoria. Eles são muitos, são políticos, deputados, senadores, exército. Nós não temos isso, então pensamos que nós devíamos fazer amizade com o povo Salgueiro, com Yanomami, com Hutukara, com xapiri”, concluiu. 

Um ano da emergência Yanomami 

O desfile das Escolas de Samba do Rio de Janeiro ocorre pouco mais de um ano após o governo federal decretar emergência em saúde pública no maior território indígena do país, a Terra Indígena Yanomami. Na época, imagens de crianças e idosos indígenas com desnutrição chocaram o país e o mundo.

“Encontramos a ameaça da destruição, é pra isso que nós estamos juntando forças. Nós vamos mostrar como anda o nosso mundo. O povo da cidade só conhece a máquina. Eles não enxergam o movimento do mundo. É isso que nós estamos pensando, em se juntar lá, se pintar, cantar, dançar, para chamar força, alegria da floresta, da água, da chuva. Essa é a nossa festa, alegria. Somos o primeiro povo que dançou, e que até hoje está acostumado a dançar, fazer alegria, animação”, destacou. 

Davi Kopenawa Yanomami é um dos líderes mais conhecidos no país pela luta de proteção à floresta. Foto: Victor Moriyama/ISA

O território Yanomami é alvo há décadas do garimpo ilegal, mas a invasão se intensificou nos últimos anos. A atividade impacta diretamente o modo de vida dos povos originários, isto porque a invasão destrói o meio ambiente, causa violência, conflitos armados e poluição dos rios devido ao uso do mercúrio. Só em 2022, a devastação no território chegou a 54%. 

“Se não fizermos animação, a terra fica triste, fica em silêncio, parece que tá morrendo, parece que a terra está caindo. Nós somos sabedoria da terra, vamos fazer o levantamento, para o nosso mundo levantar e trazer alegria pra nós”

‘Flecha para tocar o coração da sociedade não-indígena’ 

 A letra de “Hutukara”, é um alerta para o mundo a respeito da vulnerabilidade do povo Yanomami, que ainda sofre com a invasão do garimpo, com a morte e as doenças. Confira abaixo.

 Entre outros temas, sob a ótica da mitologia Yanomami, o samba-enredo também fala da devastação da Amazônia e do reconhecimento dos povos ancestrais apenas no Dia dos Povos Indígenas.

Além disso, faz um apelo a respeito dos assassinatos do indigenista brasileiro Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips, em junho de 2022, durante uma expedição no Vale do Javari. Segundo a Hutukara Associação Yanomami, os dois foram citados na letra por terem sido “‘brancos’ que entenderam verdadeiramente os povos indígenas”.

 Letra completa – Hutukara

Ya temi xoa, aê-êa
Ya temi xoa, aê-êa
Meu Salgueiro é a flecha pelo povo da floresta
Pois a chance que nos resta é um Brasil cocar

É Hutukara, o chão de Omama
O breu e a chama, deus da criação
Xamã no transe de yãkoana
Evoca xapiri, a missão
Hutukara ê, sonho e insônia
Grita a Amazônia antes que desabe
Caço de tacape, danço o ritual
Tenho o sangue que semeia a nação original

Eu aprendi o português, a língua do opressor
Pra te provar que meu penar também é sua dor
Falar de amor enquanto a mata chora
É luta sem flecha, da boca pra fora
Falar de amor enquanto a mata chora
É luta sem flecha, da boca pra fora

Tirania na bateia, militando por quinhão
E teu povo na plateia vendo a própria extinção
Yoasi que se julga família de bem
Ouça agora a verdade que não lhe convém
Yoasi que se julga família de bem
Ouça agora a verdade que não lhe convém

Você diz lembrar do povo Yanomami
Em 19 de abril
Mas nem sabe o meu nome e sorriu da minha fome
Quando o medo me partiu
Você quer me ouvir cantar em yanomami
Pra postar no seu perfil
Entre aspas e negrito, o meu choro, o meu grito
Nem a pau, Brasil

Antes da sua bandeira, meu vermelho deu o tom
Somos parte de quem parte, feito Bruno e Dom
Kopenawas pela terra, nessa guerra sem um cesso
Não queremos sua ordem, nem o seu progresso
Napê, nossa luta é sobreviver
Napê, não vamos nos render

Ya temi xoa, aê-êa
Ya temi xoa, aê-êa
Meu Salgueiro é a flecha pelo povo da floresta
Pois a chance que nos resta é um Brasil cocar

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